Romance mediúnico: Por quem o palhaço chora?


Por quem o palhaço chora.
Romance Mediúnico ditado pelo espírito Maria das Dores.

Agradeço a espiritualidade amiga que em vários momentos de insegurança me inspirou a continuar. Aos meus amigos Cláudia, Roberto, Renata e Thereza que sempre acreditaram em mim e me aguentaram nos dias de desabafo, ao meu pai e minhas filhas que suportaram minhas solicitações de tempo, a minha fiel colaboradora Edina que pacientemente assumiu toda a rotina, me ajudando a ter tempo para me dedicar quando era chamada aos teclados, ao amigo Lenivaldo que com paciência e boa vontade fez a correção ortográfica do livro, a minha irmã comadre Tereza que ilustrou a personalidade do palhaço lindamente e, principalmente, ao Pai Criador de tudo e de todos, que me oportunizou o espírito Maria das Dores para que construísse através da minha humilde mediunidade esse livro de informações para o esclarecimento de quantos possam necessitar, permitindo a minha certeza de que quando portas se fecham para nós Ele sempre abrirá janelas sublimes.

           
Prefácio

Nascemos inocentes e infantis.
Guardada em nosso psiquismo está nossa herança reencarnatória. Ela nos é desconhecida por estar protegida pelo esquecimento. Presente dado pelo Pai para que possamos, pelo livre arbítrio,  presente maior nos ofertado, conduzir  nossas escolhas.
Quantas chances precisaremos para que nossa caminhada se encurte para o progresso total? Quantas almas se afligirão para que os nós sejam desatados no esforço para reformularmos nossas atitudes?          
Vida após vida, lágrimas após lágrimas, chances após chances. O Pai é todo paciência para com seus filhos rebeldes, aguardando o retorno do filho pródigo aos braços do Pai amoroso.
Assim, evoluem as almas, evoluem os planetas, evoluem as dimensões.
Temos aqui exemplo de vidas entrelaçadas pela evolução carnal, equivocadas nos vícios, demonstrando a dificuldade em evoluírem seus espíritos através das virtudes, do perdão e da caridade.
Muitos ainda irão esgotar-se em arrependimentos e lágrimas, mas o tempo não tem pressa, ele corre conforme a necessidade de cada um.
Que nossos ouvidos sejam de ouvir e nossos olhos de ver, tanto quanto os exemplos nos dados de serem avaliados e aproveitados.  
Com carinho e desejo de que a Luz Divina seja percebida por todos que estejam necessitados de recebê-la.              
                                         Maria das Dores - Espírito


A título de orientação.
Reencarnações:

Século XVI         Século XVIII             Século XX

Sara                     Mariana                   Sara
Herrera                Genivaldo                Ferreira / Pêpe
Horton                 Coronel Mário        Toninho
Hiago                   Tunga                      Manuel
Sula                      Tiára(Nara)             Rosa
Velha                    Sebastiana              Maria das Dores
Mercedes             Mariquinha             Margarida
Hulio                       xxxxx                  Patricinho
Mãe de Herrera       xxxxx                  Marta






Prólogo


Século XX

Sentado diante do espelho, Pêpe ainda conserva a maquiagem que dá cor a seu rosto. Era madrugada, mas o sono não chegou. Seus pensamentos ainda traziam vivas as lembranças. Não podia esquecer, pois faziam parte da sua vida. Mas de onde surgiam? Não consegue entender tal sentimento que o entristece, algo que falta, que não se completa.
Transporta-se para o picadeiro, há muito se desdobra para que todos sorriem, gargalhem, chorem de alegria. E ele chora ao mesmo tempo em que faz rir, mas não de alegria, o peito oprime um sentimento triste, gerando lágrimas quentes, mas ninguém percebe, todos estão alegres, gostam dos palhaços, eles despertam em cada um a gargalhada do ridículo.
Nas pausas, se perde por momentos, nas lembranças que não o largam. Pêpe não entende aquele tintilhar que soa nos ouvidos como música, parecendo que vários pedacinhos de vidros se tocassem ao mesmo tempo. E aquele rosto de mulher? Sempre com um sorriso largo e doce. Um perfume suave de rosa, um perfume que ele nunca identificou em nenhuma flor já conhecida por ele.
Concentrado em seus pensamentos, não percebe as criaturas que o rodeiam, sente um arrepio, calafrios, um frio inexplicável. Sombras o circundam, dançam ao seu redor. Fazem parte da sua lembrança esquecida que tanto o incomoda, o faz estremecer. E, diante do espelho Pêpe vê as lágrimas correrem, a maquiagem escorrer e seu rosto, aos poucos, vai aparecendo pálido, magro, confunde-se até com um espectro. Há anos ali como palhaço a fazer palhaçada.
Retoma o dia em que nem sabe por que, se viu sentado à porta do treiler deste circo. Marta saiu tropeçando nele. Aquilo ali no chão parado, encolhido, pequeno e tremendo. Marta deu um grito, pois de pronto pensou num bicho, algo assim.
- O que é isso? Esbravejou percebendo que não se tratava de um bicho, mas sim de uma criança.
- Que faz aí? De onde veio? Está com quem? O circo já fechou há bastante tempo.
Não respondeu, tremia e chorava ao mesmo tempo.
Marta o abraçou delicadamente e o levou até o seu treiler. Fedia a xixi.
Essa é toda a lembrança que Pêpe tem, para trás nada. Não conseguia recordar nada, nem um nome sequer, um rosto, um lugar. Só pronunciava pe pe pe, por isso Marta o apelidara de Pêpe. Suas roupas não eram das piores, pelo contrário, até eram boas e Marta logo percebeu que não se tratava de uma criança qualquer. Mas de onde teria saído esse menino que, apesar das roupas, fedia e transparecia fragilidade num corpo miúdo e magro? Apavorado e acuado, um bichinho apenas. Marta se apaixonou por ele naquele instante, tornando-se sua mãe e os anos de viagens apagaram de vez o rastro do menino. Hoje Pêpe é o palhaço principal de sua vida.
Já amanhecia e finalmente Pêpe acomodado na poltrona do treiler adormeceu. Não viu aquela luz que vinha do alto, iluminando docemente sua fronte suada, nem as pétalas de rosas invisíveis que choviam em todo o ambiente, velando o sono daquele palhaço triste que na diversidade da vida teve a sua chance travada no esquecimento total da vida anterior e da vida atual, numa oportunidade única de se redimir perante ela.
Essa é a misericórdia do Pai que ao nos anular sentidos importantes nos permite uma redenção mais suave, nos poupando dos conflitos geradores das paixões.
Muitas vezes a tristeza não compreendida nos ajuda a refletir nas escolhas mais facilmente. Mas, não somos abandonados à própria sorte, nosso Pai também nos permite anjos bons a nos resguardarem nos iluminando com pétalas num doce banho de luz.


PARTE I

Capítulo I

Século XX

Era o ano de 1922, quando Manuel saiu de Portugal rumo ao Brasil. Ano difícil. Ainda não se podia contar com a fartura comercial e resquícios da primeira guerra mundial atingiam fortemente a economia de toda a Europa, refletindo na população esse desgaste.
Portugal, embora tivesse participação indireta na primeira guerra, não ficou imune aos desgastes e penúria. Os conflitos do chamado “entre-guerras” iam trazendo consequências tenebrosas para muitos, mesmo que tentassem mostrar uma “falsa paz”. Assim, era grande o número de pessoas que procuravam outros países para se estabelecerem. O Brasil estava no topo da lista, principalmente pela liberdade amigável entre eles.
Manuel, um rapazote português, viera para o Brasil buscar essa oportunidade de vida. Deixou sua vila e lá também sua Esmeralda à espera dele.
Hoje, 1932, já se foram dez anos e Manuel ainda não conseguiu melhorar sua vida. Trabalhava de sol a sol, economizava cada centavo. Sua falta de estudo contribuía para que se dificultasse à conquista de um trabalho melhor, só conseguira trabalhos em armazéns e botequins e assim mesmo, pela generosidade dos lusitanos.
O Brasil dos sonhos, também demonstrava hostilidade para os que pouco sabiam, pouco possuíam e pouco retribuíam. Manuel sabia disso, mas seu coração transbordava esperança e sua bondade o ajudou a conquistar bons amigos, pobres como ele, mas bons. Morava numa “cabeça de porco” como chamavam as casas que abrigavam muitas pessoas em pequenos cômodos com um único banheiro do lado de fora. Eram quase todos analfabetos, em sua maioria vindos de Portugal e Itália, na esperança de uma vida melhor. Lá ele conheceu Rosa Flor, sua mãe Maria de Fátima e seu irmão José Patrício.
Dona Maria de Fátima veio de Portugal atrás do marido José Patrício, que viera quinze anos antes, mas que depois de cinco, parara de dar notícias.
Manuel não esquecera Esmeralda, mas assim que viu Rosa ficou encantado com sua beleza. À distância de Esmeralda e o fogo da juventude não deixavam com que Manuel se conservasse fiel. Então ele se envolvera com algumas raparigas, todas elas de vida fácil, mas Rosa Flor era diferente, seu olhar irradiava ternura, sua pele alva era de uma delicadeza que encantava, tinha cabelos pretos e longos, lisos, sedosos e perfumados como a flor. Era doce, serena e obediente. Sempre ocupada ajudando a sua mãe nos afazeres, procurando poupá-la de esforços. Não se deixava contaminar pelo desânimo, maldades e fofocas dos moradores que a ignorância e a falta de escrúpulos de alguns, faziam do lugar um perigo constante. É certo que tinha famílias também, mas a maioria era de rapazes e moças pouco recomendados.
Rosa ainda era uma menina quando se mudou para lá, mas o coração dele bateu forte no primeiro instante que a viu.
Rosa Flor era assim, prestativa e discreta, bondosa e reservada. Sentia o sofrimento da mãe que anos a fio procurava o marido sem resultado. Todo o dinheiro que conseguira vendendo a pequena propriedade, os animais e tudo que possuíam em Portugal já não existia mais e o sufoco da sobrevivência pegou-os cruelmente desgastando-a e adoecendo-a. Dona Maria de Fátima há muito não sorria mais, há muito perdera as esperanças de encontrar seu marido e a tristeza foi tornando-se depressão e Rosa tudo fazia para poupá-la. Até os seus estudos ela deixara para cuidar da mãe. Já Patricinho, como carinhosamente o chamavam, com dezesseis anos, não se importava com nada, não estudava e sua rotina era na rua, metido com os moleques. Não tinha o mesmo carisma da irmã e em seu íntimo crescia cada vez mais uma revolta que o consumia e o impedia de sorrir, fechando as esperanças de melhorar de vida. Culpava a mãe, dizendo que se não fosse por ela, na ânsia de achar o pai, não estariam naquela situação. Rosa sabia disso e se esforçava para alertá-lo, chamava a sua atenção para a responsabilidade, mas o desânimo da mãe não lhe estimulava a autoridade, permitindo a Patricinho total liberdade, facilitando a sua delinquência. Eles perderam há muito aquela inocência de quando chegaram, ele com oito anos e Rosa com doze, oito anos atrás.
Manuel dividia o quarto com mais quatro patrícios, todos envolvidos com a boemia e a malandragem da Lapa e percebia, nas conversas, trocadas entre eles, o interesse em Rosa.
Dos quatro, Antônio era o mais esperto, era conhecido como Toninho e também veio para o Brasil, à procura de oportunidade e riqueza, mas nunca teve disposição para o trabalho e facilmente se infiltrou na malandragem, fazendo assaltos e explorando raparigas desiludidas. Envolvera-se com Sara, uma baiana esperta que ganhava a vida enganando velhos casados que a sustentavam e consequentemente o sustentava também. Apesar de amigo, Manuel não se envolvia nas armações dele. Mas percebia os olhares maliciosos do amigo para Rosa e rezava para que só ficassem nisso. Não sabia das verdadeiras intenções do amigo, que nutria uma paixão avassaladora por ela.
- Bom dia Rosa!
- Dia Manuel!
- Dona Maria de Fátima está melhor?
- Qual nada, queixa-se de dores nas costas e pede a todo instante que a morte a leve. Peço a Nossa senhora de Fátima que minha mãe melhore, esqueça o pai e perceba que Patricinho precisa dela, não estou dando conta dele, pois não me ouve.
Manuel sempre que podia olhava e aconselhava o irmão de Rosa, mas o envolvimento dele com a garotada da rua era grande e ele não se interessava com nada que não fosse a farra e a liberdade.
- Preocupe não Rosa, um dia ele vai perceber o que está perdendo.
Eram cinco da manhã e os dois precisavam correr para as providências do dia.
Na calçada, Manuel encontra Toninho, estava chegando de mais uma noite nas ruas. Sorridente, cumprimenta Manuel e faz pose de reverência a Rosa que sorri e passa adiante balançando a cabeça negativamente, pois percebe o bafo de bebida barata que exala de Toninho. Este em seus pensamentos afirma:
- Essa ainda vai ser minha! E corre apressado para o quarto.
Manuel segue adiante, pois precisa estar no botequim do patrício para servir o café para os trabalhadores da obra. Eram muitas obras e muitos operários. Trabalhadores braçais analfabetos e semi-analfabetos  como ele, quase todos brasileiros vindos de vários lugares do Brasil à procura de trabalho e sobrevivência, muitos deles trabalhadores rurais que a crise os expulsou da terra natal. Ele não se sentia tão diferente, mas não queria se acomodar nessa vida precisava alcançar uma oportunidade maior, onde pudesse melhorar a vida e, quem sabe, se casar com Rosa.
No Rio de Janeiro a situação não era das melhores, Getúlio Vargas era o Presidente do conselho provisório, gerando uma série de conflitos, principalmente em São Paulo. Mas Manuel não se metia em política, seu trabalho duro no boteco do seu Joaquim era árduo e ele precisava trabalhar, não tinha tempo para se meter em grupos, geralmente constituídos de pessoas que lutavam por nem se sabe o que. Tinha esperanças de comprar o botequim, já que seu Joaquim estava cansado e não tinha filhos.     Casara com uma preta descendente de escravos, “uma rapariga bela” como ele dizia e já se ia com bastante idade. Prometera vender seu botequim para Manuel, mas queria o dinheiro todo “para poder descansar em paz” repetia ele.
Trabalhava com seu Joaquim há cinco anos  economizando e fazendo uns bicos no dia de folga, já quase tinha o valor todo. Assim, sonhava em se casar com Rosa. Ele pretendia transformar o botequim em padaria, aprendera a fazer pães e todos onde morava gostavam. No quintal da casa havia um fogão à lenha e a senhoria permitia que cozinhassem lá. Assim Manuel treinava seus pães e doces, muitas vezes ganhando uns trocados a mais.
A “cabeça de porco” pertencia a dona Maria, viúva do Sr.Gumercindo, português rude e ignorante que explorava a miséria humana. Morrera de enfarte em cópula com uma crioula prostituta da Lapa. Dona Maria não suportava ouvir essa história e expulsava de sua casa qualquer um que ousasse repeti-la. A única pessoa simpática a ela era Rosa, desde que a família foi morar em sua casa há oito anos, pegara simpatia por ela e a tratava como filha. Rosa ensinou dona Maria a ler e escrever e isso não tinha “paga” dizia ela. Qualquer um que abusasse de Rosinha, como a chamava, logo era repreendido e até mesmo expulso de sua casa. Isso deixava Manuel mais tranquilo, pois sabia que Dona Maria sempre estava atenta a Rosinha, cuidando dela para “ele”. Uma vez até a ouviu comentar que fazia gosto em ver Rosinha e Manuel juntos. Isso deixou seu coração cheio de alegria e com mais simpatia por ela, que sempre se mostrou rabugenta e mal humorada.
A vida não era fácil, disputavam lugar ao sol e amontoados em sub casas os degredados, esquecidos e desfavorecidos buscavam a harmonia da convivência, procurando, na semelhança, o melhor modo de viver.
Os cortiços, um pouco mais organizados, abrigavam famílias inteiras de pessoas que trabalhavam honestamente ou não, na busca da sobrevivência. As cabeças de porco, residências mais liberais que abrigavam variados tipos de pessoas, traziam em sua constituição humilde a desorganizada adaptação de seus frequentadores. Mas, dessas tristes habitações, saíram homens e mulheres, guerreiros ou não que, à custa de suor e sangue, encontraram seus destinos e organizaram seus futuros, atendendo ao sonho, desejo e aspirações de cada um. E foi numa dessas que nossos personagens traçaram suas vidas, atendendo às exigências cármicas, fazendo valer a lei de causa e efeito que acompanha o destino de todos os seres.
A partir da nossa criação, traçamos nosso caminho na ânsia da sobrevivência. Primitivamente, lutamos por nos mantermos a salvo, não enxergamos o outro como cooperador, mas como adversário. Não temos consciência nenhuma da sobrevida e vivemos a única vida sentida. Essa sensação nos acompanha séculos afora, pois cravamos em nosso subconsciente o desejo de vencer e sobreviver. Enrolamos nosso novelo cármico nos comprometendo pouco a pouco, de uma forma que ao tecermos o manto da liberdade, o desenrolar do novelo é lento e difícil e muitas vezes formamos nós que gastam tempo demais para serem desfeitos. A manta que nos cobrirá será feita de lutas e lágrimas e será nosso abrigo quando finalmente encontrarmos a pureza da vida eterna, a felicidade enfim, a realização plena das intenções do Pai ao nos criar.
Dona Maria, apesar de rude, era uma mulher sofrida e entendia as necessidades de seus inquilinos, mas esta era a sua única sobrevivência. Viera muito jovem para o Brasil e só conhecera a dificuldade. Quando casou com Gumercindo ainda era jovem e totalmente dependente daquele marido por isso se submetia às mazela dele. Não estudara, pois seu pai não deixou que estudasse e seu marido seguiu seus passos. Analfabeta, não conseguia sequer pegar um bonde, pois tinha vergonha de se declarar incapaz. Depois da morte do marido, teve que assumir o único meio de vida que conhecia; a cabeça de porco.
- Nem um lugar melhor para nós vivermos o miserável providenciou. Repetia ela.
Viviam no antro, como ele gostava de viver, mas com sua ausência, dona Maria procurou colocar um pouco mais de ordem na casa que melhorou com a chegada da família de Rosinha que lhe trouxe uma sensação familiar fazendo-a reviver o ambiente amoroso de sua infância. Quando Rosinha lhe ensinou a ler e escrever o céu se abriu para ela e a segurança do saber a fez se sentir inserida e forte. Nunca ia esquecer o dia em que leu a primeira palavra: bala. E assim dona Maria passou a viver a sua rotina no meio daquela gente que aprendera a respeitar e compreender.    


OBS: Coloquei antes do prólogo uma orientação cronológica para melhor entendimento com relação aos personagens e suas reencarnações. Esta informação se encontra no final do livro, mas a pedido de Maria das Dores estou disponibilizando nesta disposisão, pois no livro a consulta seria mais fácil, sendo que na forma de capítulos ficaria mais difícil para o leitor compreender as fases,  caso somente no final pudesse se beneficiar de tais informações. Valéria Ribeiro.

Capítulo II

Mal deitara, Toninho foi sacudido por Ernesto, o amigo da malandragem corria a contar-lhe a consequência da algazarra da noite passada.
- Acorda Toninho, a polícia tá toda empenhada em achar o responsável pela morte do cabo Ferreira. Você precisa se esconder, porque já se fala na sua culpa.
- Qual nada! Ninguém me viu lá no beco. Aquele desgraçado teve o que mereceu se meteu onde não foi chamado, se envolvendo com Sara. Ela é minha, meu ganha pão. Na malandragem ninguém se mete. Depois quem mandou morrer, só dei umas bofetadas, ele partiu para cima de mim e o canivete furou a sua barriga, ele reagiu, tive que me defender, caiu e bateu com a cabeça. Bem feito, assim aprende a não mexer mais com rapariga de ninguém.
- Mas Toninho, todos sabem que ele cercava a Sara e ela gostava, vão de certo te acusar. E eu? Que atraí ele para o beco? Não quero parar na cadeia. 
- Me deixa dormir homem, não vê que estou morto? Ernesto saiu resmungando, não ousava contrariar Toninho.
Naquela hora, Toninho não percebeu e num arrepio se tremeu todo. Não viu a sombra negra que o envolvia. Ferreira morreu, mas não se via morto, nem entendia o que estava vendo, mas o ódio lhe fervia o rosto e, se debatendo, esmurrava Toninho, que sacudia num tremor.
- Maldito! Não sei como cheguei aqui, mas não sairei daqui enquanto não te destruir! Berrava Ferreira segurando a barriga por onde o sangue jorrava.
Voltando a se deitar, Toninho dorme e se vê correndo com um punhal na mão. Deixara o rastro de sangue e tentava fugir. Tinha se vingado enfim do maldito. Mas enquanto corria, gritos terríveis o chamavam, era daquela mulher traidora que jazia morta em seu quarto. Deu um pulo num susto e todo suado, voltou a dormir.
Cabo Ferreira era da guarda, mas de honesto nada tinha, se aproveitava da malandragem sempre a cobrar um silêncio aqui, um favor ali. Envolvia-se também com as raparigas de vida fácil e quando podia tirava-lhes todo o ganho com ameaças e opressões. Era odiado e seu fim já era esperado, mas ninguém se atrevia, pois ir para o xadrez significava perder a liberdade para sempre. Ele sabia disso e se aproveitava. Mas não pensou que se envolvendo com Sara seu destino estaria marcado. Não sabia por que, mas aquela mulher mexia com ele. Não lhe tirava o ganho, pelo contrário, dava dinheiro a ela. Gostava dela. Algo nela o fervia o sangue de prazer, ela sabia seduzi-lo, encantá-lo e ao seu lado se sentia bem. Era casado, por isso nunca poderia se casar com Sara e tirá-la daquele lugar, já até tinha pensado nisso, desejando que sua mulher morresse. Não entendia o que sentia, embora soubesse que era o sexo que o atraía, mas afinal não era o sexo que prendia todos os homens nas armadilhas? Ele não tinha forças contra essa sedução.
A corporação sabia do envolvimento de Ferreira, mas ele tinha “costa quente” e quem lhe protegesse, então fechavam os olhos, afinal era a Capital federal e a guarda não queria se vir envolvida em escândalos.
Laços muito fortes ligavam Ferreira, Toninho e Sara. Laços de amor, traição e vingança. Várias vidas serviram de oportunidades para que eles se perdoassem, se redimissem e seguissem seus caminhos em paz na busca da felicidade, rompendo os laços cruéis que os prendiam vidas a fora. Mas não conseguiam, sempre sucumbiam aos vícios, às vantagens fáceis, aos caminhos obscuros. Já três reencarnações de oportunidades para a melhora e a reconciliação, mas falharam. E quando não é um é outro que desce ao abismo do crime, da vingança do atraso.
O Pai, em sua infinita misericórdia e paciência, espera que seus filhos cheguem à perfeição moral, dando-lhes as chances e o livre arbítrio. Mas, talvez, não será ainda desta vez que Toninho, Ferreira e Sara conseguirão avançar, mesmo tendo junto deles Manuel e Rosa. Apenas Rosa avançara em sua evolução e aceitara voltar para ajudar. Estivera em suas companhias em reencarnações difíceis, sofrera muito, mas conseguira, com a ajuda de benfeitores espirituais, superar as angústias, os medos e os ressentimentos, referências das tragédias anteriores. Manuel, ainda remanescente de revolta antiga, reencarnara ainda agora para que as provas impostas a ele pudessem desta vez, libertá-lo das amarras da vingança.
O sofrimento ajuda na evolução e na conquista da felicidade futura, mas nem todos conseguem perceber isso e superar, ultrapassando as barreiras do ódio provocado pela vaidade e pelo orgulho adquirido da ganância material. 
Sara, apavorada, resolveu dar um tempo, correu a pegar a condução para a Bahia, ia passar uns tempos lá até que as coisas se acalmassem. Tinha guardado uns trocados que a ajudaria por uns meses e sabia que sua função era de fácil proveito em qualquer lugar. Ela não pôde deixar de pensar em Manuel, tiveram um envolvimento. Ele gentil e bondoso conquistara o seu coração. Ela se sentia uma dama quando estava com ele. Tão diferente de Toninho e Ferreira, o primeiro bruto e explorador e o outro ciumento e possessivo. Sentia seu coração bater mais forte e jurara conquistá-lo, mas chegou aquela sirigaita metida a boazinha. Manuel se encantou com ela e nunca mais viu nos olhos dele possibilidade de amá-la. Rosa fisgou o coração do seu amor, mas isso não ia ficar assim, pensava com raiva.
O assunto corria solto e a morte do cabo Ferreira movimentou a perseguição às prostitutas, malandros e boêmios da Lapa.
O nome de Toninho estava nas bocas, mas ninguém se atrevia. Não tinham como provar, só suspeitas, então Toninho resolveu não mudar seus hábitos. Soube da batida que fizeram na casa de João Francisco, suspeitavam que estivesse envolvido na morte do cabo, Toninho conhecia a fama dele com os “canas” e se beneficiava dessa suspeita. Não gostava mesmo dele, veado metido a valentão. Dizia para Ernesto;
- Deixa estar que enquanto desconfiam dele, ficamos esquecidos.
- João é barra pesada, chave de cadeia, tomara que não desconfie do nosso envolvimento, não quero confronto com ele.
- larga de ser medroso homem! Ele vai na navalha e eu no canivete. Não haverá confronto.
- Valha-me senhor! Nem quero ver. Dizia Ernesto desconjurando.
No final de 1932, a Lapa fervilhava e o policiamento também. A Capital federal vivia a expectativa das conspirações, influenciados pelos grupos revoltados formados pela insatisfação política vinda de São Paulo, que pretendiam derrubar Getúlio. Portanto as ruas não eram seguras. Mesmo assim Toninho se arriscava, dizia-se avesso à política, não se envolvendo nessas conspirações, mas sempre se aproveitava delas, escondendo um aqui, outro ali, levando e trazendo recados, captando alguma informação e nisso tirava vantagens, mas também vivia o risco próprio da conduta escolhida.
Ferreira não desgrudava sempre às espreitas influenciando seus pensamentos, criando fantasias que despertavam a cobiça em Toninho. Até na malandragem da Praça Tiradentes, que Toninho evitava por respeitar o código de área, Ferreira o inspirou a avançar, agora se infiltrava para que de alguma forma pudesse levar vantagem.
Ferreira estava mais forte, agora já conseguia entender a sua situação e o seu desejo de vingança o fortalecia mais, aprendera a usufruir da sintonia baixa de Toninho que lhe dava energia.
Toninho queria, de qualquer forma, ganhar dinheiro, ser rico e influente, nem que fosse de modo escuso e isso facilitava a investida de Ferreira que vibrando na mesma sintonia se apropriava dos vícios dele. Ferreira se deleitava se regozijava de prazer nas noitadas, nos jogos de azar, nas bebidas. Toninho dava a ele tudo que sempre desejou, mas que a posição na guarda o limitava. E a ambição crescia em Toninho, pois enriquecendo com certeza teria alguma chance com Rosa, pensava. Ferreira descobriu esse ponto fraco nele, assim usava essa paixão impossível para manipular e destruir seu inimigo.
Ferreira ainda não sabia, pois sua mente vingativa não permitia que sua memória clareasse e lhe mostrasse o quanto já tinha contribuído para a desgraça desses seres que há muito se cruzavam. Não se lembrava do envolvimento amoroso formando um trio de paixões e revoltas, cujo desfecho foi o retardamento evolutivo e a permanência nas trevas espirituais, arrastando almas cuja luta ferrenha travavam para evoluir. Ainda agora, influenciava na possibilidade de uma nova desgraça, contribuindo para um novo estacionamento evolutivo. E seres amigos, comprometidos na ajuda para que finalmente o grupo pudesse aproveitar a oportunidade dada pelo Pai misericordioso, recolhiam-se ao canto, nada podendo fazer, respeitavam o livre arbítrio de seus pupilos e lágrimas escorriam de suas faces, orando ao Pai que a treva não vencesse o bem e que Ferreira, embora envolvido numa nuvem escura, pudesse perceber o quanto equivocado estava, mas o seu ódio era tanto que ele não percebia a luz vinda dos benfeitores, pois formara um escudo de rejeição.
Toninho, após anos na erraticidade e socorrido por benfeitor amorável, comprometera-se em resgatar seu compromisso com os que prejudicara. Pedira a vida dura, o trabalho árduo e as dificuldades para que pudesse valorizar o esforço e a solidariedade. Não obstante, esquecera de abafar os desejos sensuais, a sedução às facilidades, a exploração. Seu esquecimento ao retornar não lhe favoreceu para as consequências das tentações e sucumbindo aos percalços da trajetória, enchera mais o seu novelo, pausando a tecelagem de sua manta.
Toninho abre brecha para que Ferreira continue com seus planos, amarrara mais nós em seus destinos e o comprometimento intensificou muito além do esperado.
Ao matar Ferreira, Toninho prejudica a chance de ele ajustar sua evolução, pois amando Sara sinceramente e dando oportunidade dela o amar, Ferreira poderia desatar os nós do passado, desmanchando os ódios que os envolviam. Mas, ao se ver na imortalidade prejudicado por ele, Ferreira resgata o ódio, o rancor e o desejo de vingança. Ambos foram prejudicados por atos impensados e mesquinhos, prometendo ainda muitas lágrimas e sofrimentos para os que vieram para redimirem seus atos.
Ferreira às vezes pensa em Sara, são raros momentos em que cansado dá uma pausa nas investidas contra Toninho. Nestes intervalos em alguns instantes, lembra-se dela e do seu sorriso. Seu coração bate forte e sente uma saudade que lhe trás pequenos momentos de quietude. Amava-a com paixão, desejava com ardor. Mas, logo a raiva toma-lhe de supetão e o faz lembrar que aquele infeliz que está diante dele é o responsável por nunca mais poder abraçá-la. A ignorância de seu ódio cega-lhe a visão para as possibilidades, está tão focado em sua vingança que não tem noção do que pode ou não fazer em seu favor. Querer ver Sara não lhe seria impossível se sua intenção não fosse somente Toninho. Seu comportamento limita a linha de atuação mantendo-o preso junto à vítima. Ferreira não sabe, mas sendo seu algoz, Toninho já marcara em sua jornada compromisso com a lei Divina de causa e efeito, portanto bastava que se libertasse das amarras da vingança para que tomasse novo rumo redentor em seu benefício. Sendo algoz no passado, não suportou a consequência na atual vida e tornando-se vítima nesta, não consegue aproveitar a oportunidade para o reajuste.
Toninho chega em casa, já era madrugada. Logo cedo ouve o murmurinho.
Levanta-se contrariado e ouve quando Manuel é chamado, só ouve que era alguma coisa com o patrão. Deixa pra lá, pensa. Volta a dormir, afinal não tem nada a ver com aquilo.
Noite alta forte chuva. Toninho se vê correndo, tendo na mão um punhal que pingava uma mistura de sangue e chuva. Está cansado, mas não pode parar. Em sua mente cravara a imagem dela, da maldita, da traidora. Ele a matara e agora tem que fugir. Aquele desgraçado arruinou a minha vida esbravejava e corria feito um louco. Toninho abre os olhos, mas não consegue se mexer está todo suado e seu coração salta-lhe à boca. Neste momento de terror, num relance, visualiza Ferreira as gargalhadas avançando em sua direção. Num esforço, salta da cama e o fantasma some. Ferreira se aproveita do sono de Toninho e de seus pesadelos, quando ele se afasta do corpo e sua visão fica mais clara, mostra-se provocando verdadeiro pavor a Toninho.
Quando acorda, faz o sinal da cruz e isola esbravejando “sai pra lá satanás”. Pensa que é da bebida vagabunda que servem naquele bordel vagabundo. Sente saudades de Sara que sempre tinha uma bebida descente para ele. Volta a dormir, pois ainda é muito cedo para acordar.  


 Capítulo III

Sara não esperava que isso acontecesse com ela, saiu da Bahia ainda com quinze anos, aceitara acompanhar Jorge Alberto, um mascate que passara por lá vendendo muitas coisas bonitas. Bem mais velho que ela, prometera uma vida confortável, caso ela se comportasse. Não pensou duas vezes.
Nascida num lugar pobre vivia uma vida miserável, sua mãe tivera dez filhos e esperava o décimo primeiro. Era uma mulher triste e acabada e não queria ficar como ela.
Seu pai ficava tempos fora, na capina da roça, era roceiro de uma fazenda, mas o trabalho era escravo e a remuneração era trocada por comida e pela pequena casa que moravam. Nada pertencia a eles. Ele bebia e, constantemente bêbado, surrava a mãe e todos os filhos. Um dia ele chegou em casa, estava embriagado e partiu para cima de sua irmã Selma. O que viu a deixou horrorizada. Ela gritava e ele, com a mão em sua boca, ia rasgando sua roupa e a sua honra. Sua mãe gritava para que ele parasse, mas sem força e com mais um bebê na barriga, silenciou-se num canto a chorar. Sara nunca tinha presenciado uma cena daquela, neste instante resolveu fugir de casa.
Sara não pretendia sair assim, queria esperar mais um pouco, fazer dezoito anos, assim poderia trabalhar em alguma casa na cidade mais próxima, pois não era preguiçosa, tinha força nas mãos e não era feia, já tinha até ouvido elogio pelo corpo “moreno e arredondado” e sempre que ouvia isso, ria baixinho e corava.
Sua irmã tinha dezessete anos quando tudo ocorreu e o pavor de isso acontecer com ela a fazia pensar que seria a próxima.
Fugiu sem saber para onde ir, nunca tinha saído dali, pois ela e seus irmãos nasceram lá, ninguém estudou, não tinha escola e o pai dizia que melhor era trabalhar, para que saber de coisas que nunca iriam conhecer? Sempre repetia isso.
Sara saiu sem rumo e sem destino. O que esperar? Não viu nada mais, saíra correndo ainda de madrugada.
À medida que os dias passavam, sem comida, só com umas frutas que encontrava pelo caminho, dormindo ao relento, o pavor, a insegurança, numa vastidão de terras sem fim foi ficando fraca e vulnerável. Então, neste trajeto o que ela temia foi inevitável. Faminta e sem dinheiro algum, analfabeta e suja, só lhe restou pedir ajuda naquela casa. Uma mulher gorda e esquisita a recebeu e sem rodeios foi logo dizendo:
- Aqui não é casa de favor, se quiser comer, tem que trabalhar. Quantos anos você tem?
- dezoito disse Sara aumentando três anos.
- Não me parece ter essa idade, mas de qualquer forma está magra e me parece interessante, já andou com algum homem?
Antes que respondesse Sara caiu desmaiada ao pé da porta.
- Acho que não, disse a mulher chamando uma outra que estava perto da escada.
- Ótimo! Vai nos render muito mais, disse num sorriso sarcástico.
Quando acordou, Sara estava limpa e sua roupa cheirava bem, de alguma forma aquela situação não lhe pareceu tão ruim e pensando na irmã que não tivera escolha, ficou triste, mas naquele momento ela também não tinha escolha, estava desesperada e só. Assim, sua primeira noite foi com um homem velho e fedorento que no leilão ofereceu a maior quantia. No fundo Sara sabia que aquele lugar era provisório e logo partiria dali.
Ainda trabalhou seis meses nessa casa.
Foi lá que conheceu Jorge Alberto, que com uns trocados convenceu a dona da casa a levar Sara com ele. Isso foi em 1923. Acompanhou aquele homem por terras sem fim, indo parar em São Paulo. Não demorou muito para que ele tirasse a máscara de bonzinho e, inescrupulosamente, ensinou Sara as mais variadas formas de sedução, explorando seu corpo incessantemente e quando não mais se interessou, se fez seu cafetão. Não diferente de seu pai, volta e meia a surrava, “para amansá-la” dizia aos vizinhos. Mas também lhe ensinou a ler e escrever, a comer com talheres e algumas formas de falar educadamente. Ele dizia que mesmo vagabunda, deveria ter educação, caso contrário só conseguiria “pé de chinelo”. Na primeira oportunidade Sara fugiu, era o ano de 1927.
Chegou ao Rio de Janeiro, foi morar na Lapa, conheceu Manuel e Toninho e agora cinco anos depois seguia rumo à outra etapa de sua vida.
            Hoje, dentro daquela condução, de baldeação em baldeação não sabia o que a esperava em Salvador, mas ela queria retornar logo, pois não deixaria seu amor nos braços de outra, se não fosse dela, não seria de mais ninguém.
Sara muitas vezes pensara que suas chances de um dia viver uma vida digna eram poucas, mas conhecendo o coração de Manuel, percebia que ele não se importava com a vida que ela levava, ele a respeitava e entendia seus motivos e isso acendeu uma esperança em seu coração. Se ele a tirasse daquela vida, ela seria fiel a ele até a morte. Mas, ele não sabia que também seria até a morte que ela lutaria por ele.
Manuel era seu amor, por isso nunca lhe cobrara nada pelas noites, em que aconchegado em seus braços sonhava em um dia ser rico e viver uma vida mais honrada e era esse desejo que os faziam iguais.
Foi ele quem fez com que voltasse a acreditar nos homens, pois odiava o pai e transferira para todos os homens esse ódio. Para Sara eles não prestavam, eram nojentos e quando a usavam, o que fazia com que não os matasse, era a facilidade com que os enganava. Usava o que tinha de melhor; a sedução e o sexo e levando-os ao êxtase arrancava o que queria deles, dinheiro, joias, roupas. Seus preferidos eram os casados, pois fazia com eles o que eles não sonhavam fazer com as esposas e assim, os prendia em sua teia. Por muitas vezes armou com Toninho para que eles fossem fotografados e chantagiados, assim ganhavam muito dinheiro. Surpreendia-se com ela mesma, não sabia de onde vinha essa facilidade para aprender essas artimanhas da sedução, mesmo com a “escola” de Jorge Alberto, sentia a satisfação em aprender e reproduzir as “dicas” por ele dadas e fazia até melhor. Era como se de alguma forma, isso fosse bem familiar a ela. O suor, a respiração ofegante, o prazer, eram todos familiares a ela. Até mesmo a satisfação em enganar e explorar os homens que por ela passaram.
Pensava em sua família, nunca mais ouvira falar nada deles. O que teria sido feito de sua irmã depois daquela noite? Ela nunca ficaria sabendo.
Teria que chegar a Salvador e logo procurar se virar. Tinha contato com uma colega dos tempos em que ficou naquela casa de prazer. Sebastiana, Tiana como gostava de ser chamada, umas poucas cartas, a última dizendo que tinha se amigado com um marinheiro que conhecera no porto. Ela era bastante experiente e ia tentar encontrá-la.  Não desejava ficar muito tempo, só uns meses até as coisas se acalmarem.
Sara não entendia o porquê dessa vida, via as moças passeando, bem vestidas, delicadas e cheirosas sempre respeitadas e reverenciadas. Por que ela? Por que nascera na miséria? Não se sentia incluída no meio em que vivia, sentia que tinha o luxo na alma, sempre que dormia sonhava que estava num lugar luxuoso, vestia roupa bonita de veludo e via escravos à sua volta e, algumas vezes, via homens belos a cortejá-la. Por que em seus sonhos essas cenas se repetiam? Mas de repente tudo ficava escuro e ouvia gritos, gemidos, correntes arrastavam fazendo barulho, então o ar faltava, era como se estivesse sendo sufocada. Acordava num salto, o coração aos pulos, a garganta seca. Mesmo acordada ainda sentia aquela mão gelada a segurar seu pescoço.
O sonho era sempre assim, bonito no começo e terrível no final. Não lhe parecia com a sua vida, que sempre fora uma desgraça. Seria carma? Há muito tempo não ia a um terreiro, não tinham muitos no Rio de Janeiro, mas na Bahia, ela iria com certeza, tinha que consultar os orixás, assim que chegasse ia procurar um bom terreiro.
Recostou a sua cabeça no banco e deixou que seus pensamentos continuassem a vagar. Ora no passado, ora em Manuel, ora no futuro que lhe aguardava.
 Sua mãe Maria das Dores a observava. Espírito evoluído desencarnou quatro anos depois que Sara saiu de casa. Sua vida foi um resgate cujo objetivo era proteger Sara, mas sabia que teria que viver com Tibério, espírito com muitas dívidas, envolvido severamente com Sara e Selma em outra encarnação. Ela não esperava a reação de Tibério para com Selma que viera nesta encarnação como filha dele, assim nada pode fazer para impedir os acontecimentos.
Muitos espíritos precisavam reencarnar por seu intermédio e as gestações constantes a debilitaram, fazendo muitas vezes com que ela precisasse de ajuda. Sabe que falhou, mas a misericórdia Divida não a desamparou e tendo o consentimento de amigos que a orientavam, olhava por Sara.
Sara ter partido repentinamente a deixou triste, não sabia o que lhe tinha acontecido, tivera ímpeto de sair correndo a procurá-la, mas não podia se esquecer dos outros. Selma, desde aquele dia se trancara, fechara todas as possibilidades de comunicação, não comia, não dormia enlouqueceu e dois anos depois morreu vítima de uma tuberculose. Maria das Dores estava grávida quando tudo ocorreu e o susto que tomara a fez perder o bebê, sem recurso, quase morreu.
Tibério nunca mais foi o mesmo, despertando da loucura, não conseguiu mais olhar no rosto dos filhos e cada vez bebia mais. Numa noite caiu em um buraco ficando perdido. Ninguém sabia dele e sem condições de procurar nada puderam fazer, seu corpo foi encontrado dias depois por um roceiro que passava por lá.
Foram anos terríveis onde quase morreram todos de fome. Dos dez filhos, três morreram, Sara fugiu e o resto continua por lá. Maria das Dores depois da saída de Sara, da morte de Tibério e de Selma, enfraquecera ainda mais e também sucumbira à tuberculose. Era como se a morte de Selma e o desaparecimento de Sara, de alguma forma, interrompesse um ciclo na Terra de compromisso. Mas Maria das Dores sabia que agora a vida espiritual lhe exigia a reparação, então se comprometera novamente em ajudar Sara. Selma ainda inconsciente recebia tratamento dos benfeitores, precisava desse tempo para compreender seu comprometimento e o que resultara dele em relação a Tibério.
A roda dos resgates, cujo efeito provém de uma causa, gira cobrando as atitudes para que o equilíbrio se faça. E, mesmo respeitando o livre arbítrio de Sara, Maria das Dores, sempre de maneira doce e constante, a inspirava e a aliviava das dores que traziam revoltas em seu coração. Aplicava-lhe passes magnéticos enquanto dormia e quando os pesadelos se faziam insuportáveis, orava ao Pai misericórdia, aliviando sua angústia e poupando sua memória para que ao acordar, seu dia não fosse de todo ruim.
Também tinha Tibério, que enlouquecido vagava na matéria e quando  permitiam Maria das Dores tentava, em vão, trazer Tibério à consciência num trabalho constante de ajuda e apoio. Mas há de se respeitar o irmão que em sua loucura não conseguia abrir os olhos para a luz. Maria das Dores tentava se redimir a tempos das injustiças que cometera colaborando negativamente nas vidas desses irmãos comprometendo esses espíritos, agora fazia o que precisasse para ajudá-los.
Sara finalmente chega a Salvador e desembarca ansiosa, não conhece a cidade, nunca estivera lá, seu destino tomou outro rumo antes. Precisava arrumar algum lugar para pousar, descansar, a viajem foi longa e cansativa e estava toda quebrada.
O dinheiro não era tanto e tinha que procurar por Tiana. Informou-se de uma pensão barata, não era no centro, mas era o que podia pagar. Já era noite alta quando conseguiu finalmente pegar no sono e, de tão cansada, só acordou três horas da tarde do dia seguinte. Tomou um banho e decidiu dar uma volta para conhecer melhor a cidade. Nascera na Bahia, portanto não seria tão difícil assim se comunicar. Tentaria conseguir um trabalho em alguma casa, talvez pudesse mudar um pouco a sua vida. Era bonita, era esperta. Quem sabe poderia ter algum tempo de dignidade.
Pela primeira vez a esperança surgiu em seu pensamento e um sorriso que mostrava uma covinha em cada lado se abriu largo e faceiro.
Já estava na cidade há quase um mês e não conseguindo encontrar Tiana, acabou desistindo. Mas nesse tempo conheceu algumas pessoas e sua graça logo chamou a atenção de alguns. Uma dessas pessoas a levou no terreiro de mãe Babete que lhe jogou os búzios.
- Minha filha, seu futuro é próspero, porém nebuloso. Se insistir em seus planos, longos caminhos tortuosos serão traçados e muito sofrimento irá passar. Dissera a baiana.
- Desistir de Manuel, nunca!  Afirmou Sara.
- Os búzios não mentem, em seu caminho não cabe o “perna-de-calça” que persegue. Terá um que muito lhe fará feliz.
- Não vim aqui para ouvir besteira. Basta.
Sara inconformada com a resposta dos búzios sai porta a fora contrariada.
No dia seguinte ela resolve ir ver um emprego que uma senhora conhecida da dona da pensão lhe indicou. Era de arrumadeira na casa de um bacana, o salário era razoável e dava dormida e comida. Tinha que trabalhar, já que o seu dinheiro não era tanto assim para muito tempo. Pôs-se arrumada e foi ao endereço indicado.
Era no centro de Salvador, lugar bonito, limpo, bem diferente do local onde ficava a pensão. A casa era grande e de luxo. Foi recebida por um homem de uniforme que lhe indicou o caminho dos fundos para que falasse com Dona Murila, pois ela é quem iria entrevistá-la.
Sara olhava tudo encantada. Nunca tinha visto tanto luxo, nem no Rio de Janeiro quando passeava por Copacabana tinha visto algo comparado àquela mansão. Murila a olhou de cima a baixo e perguntou:
- Quem te deu informação?  
Sara respondeu falando da tal mulher.
- Quais são as suas referências? Sara disse que nunca tinha trabalhado, que perdera a mãe ficara só e que estava numa pensão de uma conhecida, mas tinha boa vontade e aprenderia depressa. Resolveu mentir.
- Gostei de você! Disse Murila.
- Esteja aqui amanhã bem cedo para fazermos um teste.
Sara voltou para a pensão radiante. Ali seria o pouso dela até que chegasse o momento de voltar para Manuel. Quase não dormiu de tanta ansiedade e nem amanhecia quando pulou da cama, se arrumou da melhor maneira que pode, mas mantendo a discrição e saiu para o teste.
Chegando, foi diretamente encaminhada para os fundos. Murila veio encontrá-la e foi logo dizendo:
- Vista o uniforme que está lá naquele quarto e venha para a cozinha, vamos começar o teste agora no café da manhã. O patrão é muito exigente e não tolera atraso.
Sara pensou que servir café da manhã não devia ser muito difícil. Mas o que ela nunca tinha visto era uma fartura daquela logo pela manhã. - Os ricos comem mesmo. Pensou.
- Venha Sara, vou te apresentar a Odete ela é a cozinheira da casa e em alguns momentos você terá que lidar diretamente com ela.
- Odete, esta é Sara, está aqui hoje para o teste de arrumadeira, mas vai te ajudar também na hora de servir as refeições. Explique para ela como arrumar a mesa do café da manhã, mas rápido, pois o Doutor Alberto logo descerá. Murila deu as ordens e saiu apressada.
Sara estava encantada com aquele mundo, como alguns podiam desfrutar de tanto conforto e fartura? Ela que nasceu na miséria, lutou para ter o mínimo e o máximo que fizesse só conseguia pouco conforto e contada comida.
- Você, corte esse mamão em pequenos quadrados e coloque-os nesta tigela. Lave as laranjas e esprema, para esta jarra será necessário quatorze laranjas. Os pães devem ser colocados na cestinha sempre com um pano por baixo, corte aqueles e coloque-os no forno para que dê uma aquecida. Vou fazer o café e esquentar o leite, disse Odete sem levantar o rosto para Sara. Ela sabia que não adiantava querer fazer amizade antes da aprovação do patrão, já viu muitas passarem por lá e não ficarem. O patrão era exigente e não aprovava qualquer uma, mesmo que fossem eficientes no teste.
Sara fez tudo com o maior capricho e rapidez e foi para a sala junto com Odete para aprender a arrumar a mesa. Quando terminaram Odete voltou para a cozinha e Murila pediu que ela permanecesse na sala para servir ao patrão.
Sara não percebeu nenhum ruído, nem de criança, nem de cachorro. Seus pensamentos viajavam. - Será que o patrão era casado? Tinha filhos? Mas a casa era tão silenciosa, decerto estavam todos dormindo. Murila a cutucou e a fez despertar de seus pensamentos. Naquele instante viu descer as escadas um homem. Alto, bem vestido, deveria ter uns quarenta e cinco anos, cabelos pretos, barba bem feita e um perfume que exalava por toda a sala. De homem ela entendia e aquele era dos melhores. Não pôde tirar os olhos dele e seguiu seus passos quase que hipnotizada. Murila reparou e deu-lhe um empurrão dizendo:
- Não se impressione o que tem de bonito, tem de exigente.
Mas, Murila preocupada com Sara, não reparou que o Doutor Alberto percebera a nova serviçal e os dotes de Sara não lhe passaram despercebidos.
Sara serviu o patrão com todo o talento que lhe era natural e entre um café e um leite sorriu para ele mostrando-lhe as covinhas e os dentes brancos e perfeitos. Ela não soube neste momento, mas ganhara aquele homem para sempre.
Depois que o patrão saiu, Murila veio ao encontro de Sara na cozinha e foi logo comunicando:
- Sara, disse Murila contente, você está aprovada, se quiser pode ficar desde já, mas se precisar buscar algo em casa vá agora e volte imediatamente, pois começa ainda hoje no trabalho. Sara quase não acreditou no que ouvia e, feliz, disse;
- Preciso buscar as minhas coisas, voltarei logo e, radiante, foi acertar sua saída da pensão. Estava certa que aquela era a sua chance de mudar de vida.
Sara saiu apressada, queria voltar o mais rápido possível.
Maria das Dores assistia a tudo com alegria, pois sabia que aquela chance, permitida pelo Pai era uma oportunidade para que Sara traçasse um novo rumo em sua vida. Vibrava por ela.



Capítulo IV

Rosa correu, tinha que comprar o pão para tomar café, precisava se apressar, pois era muita roupa para lavar, as freguesas não esperavam e queria aproveitar o bom tempo para adiantar a lavagem.
Na casa de Dona Maria havia quatro tanques e as mulheres lavavam roupas lá. Ela cobrava uma taxa a mais pelo uso deles, mas para Rosinha era livre.
Desde que a mãe adoeceu Rosa assumira a lavagem das roupas, não ligava e até gostava de lavar, colocar a mão na água fria. Aproveitava para pensar na vida, pensar em Manuel gostava dele e sentia que era correspondida, mas ele nunca tinha se declarado.
Lembrava-se dos tempos em Portugal, nunca pode aproveitar a infância, seu pai partira para ganhar dinheiro e prometera voltar para buscá-los, mas à medida que os anos passavam, eles foram perdendo as esperanças. Seu irmão tinha um ano quando o pai se foi e ajudava a mãe nos cuidados com ele.
Moravam numa vila no interior e apesar de possuírem um pedaço de terra, alguns animais e uma pequena plantação, não eram felizes, pois sua mãe não conseguia suportar a ausência do marido o que a desanimava e a fazia perder as forças, assim, não conseguindo dar conta sozinha de tudo, Rosa então foi obrigada a colaborar mais.
Quando a mãe percebeu que o pai não mais escrevia e não respondia às cartas que enviava, decidiu vender tudo e ir atrás do marido, não se conformava em ficar à espera, não tinha mais ninguém, casara muito jovem e foi morar muito distante de tudo, não queria morrer ali, sem marido, sem saber como sobreviver.
Chegaram ao Brasil em fevereiro de 1925, numa longa viagem. Rosa tinha doze anos. Primeiro foram para uma pensão simples e barata ficando lá por quase três anos. Mas, com o tempo o dinheiro foi acabando e precisaram sair de lá.
O dono da pensão, penalizado com a situação deles, recomendou a casa de Dona Maria. Era uma “cabeça de porco” suja e mal frequentada, mas era o que eles podiam pagar. O marido de Dona Maria foi patrício dele, ficando mais fácil conseguir um quarto. Quando Gumercindo era vivo dava preferência a solteiros, mas agora com Dona Maria que queria melhorar a freqüência da sua casa, não foi difícil arrumar um quarto para eles. 
Dona Maria, se encantou com Rosa, ajudando e orientando ela e a mãe. Vendo o trabalho das lavadeiras e incentivada por elas, dona Maria de Fátima também começou a lavar roupa para fora. Foram bem recebidas e acolhidas e logo se sentiram parte daquele grupo sofrido com suas histórias e angústias.
Rosa sempre acompanhava a mãe nas casas das freguesas que, bondosas e sensibilizadas com a situação delas, davam roupas, alimentos e brinquedos para o irmão.
A vida era assim, uns providos de tudo, outros desprovidos de quase tudo. Mas Rosa não lamentava, de alguma forma em seu íntimo sabia que era assim que tinha que ser, não sabia por que, mas precisava dessa experiência para sua vida.
Ouvia uma voz interior que a acalentava e lhe dava ânimo para prosseguir e de alguma forma essas criaturas dependiam dela, a fragilidade da mãe e a rebeldia do irmão a faziam querer ajudá-los cada vez mais se comprometendo com o futuro deles e sendo parte indispensável em suas vidas.
Rosa, nestes momentos, era iluminada por uma luz suave de tonalidade azulada, que enchia de energia seu perispírito dando-lhe força e refazimento em suas energias.
Era Maria das Dores que, comprometida também com aquele espírito em afinidade de tarefa, lhe enviava fluidos restauradores, numa colaboração permitida do alto para sua amiga que estivera com ela nos caminhos da existência.
Essa sintonia era feita sempre que Rosa se permitia buscar forças numa atitude de resignação e amor ao próximo.
Um dia esses espíritos se encontrarão e num abraço poderão enfim descansar ao dever cumprido em toda a sua extensão, mas agora estavam comprometidos com o resgate que a roda reencarnacionista pede. Maria das Dores, no plano espiritual, orava por Rosa que ainda se encontrava na Terra.
Tinham muito ainda a andar, caminho longo de espinho a percorrer. Maria das Dores, num ato de amor, ergue suas mãos ao alto e roga ao Pai misericórdia pelas almas que, envolvidas, tinham muito ainda a sofrer.
Dona Maria chama Rosa que num sobressalto desperta do pensamento distante.
- Rosinha! Veja, Dona Helena enviou um recado para que você fosse lá hoje, tem uma vizinha que quer uma lavadeira.
- Que bom tia! (Rosa chamava carinhosamente Dona Maria de tia), assim não sentiremos falta da lavada de Dona Augusta que me dispensou por conta de sua viagem a Europa.
- Gente fina é assim, volta e meia está viajando. E desta vez ela vai ficar quanto tempo? Perguntou dona Maria.
- Três meses. Disse Rosa sorridente.
- E Manuel? Já saiu para o batente? Você o viu?
- Vi. Logo cedinho já saía. Estava animado, pois dissera que faltava pouco para a compra do botequim do patrício. O Toninho também passou por aqui e logo entrou para dormir.
- Mais um dia de farra! Gritou Dona Maria.
 As duas riram e foram para seus afazeres.
Quando acabava de lavar as roupas pegava no ferro e lá pelas três da tarde Patricinho ia levar a trouxa para a freguesa. Ele era rebelde, não gostava de trabalhar, mas sabia da dificuldade da sua família e não se recusava a fazer esse trabalho, mesmo porque, sempre lhe sobrava uns trocados que as madames lhes davam, assim ele trazia sempre um doce para Rosa. Um agrado. Amava a irmã e tinha pena de seu destino, ela era linda e se acabava na labuta sofrida. Por isso era exigente com as meninas, não via nelas as qualidades de sua irmã e as classificava como meninas fáceis e fúteis. Rosa não gostava de ouvir o irmão falar assim, deveria respeitar as moças, pois cada um é como é. Patricinho não ligava, era o que ele achava e pronto.
Rosa tinha uma amiga, seu nome era Margarida e não pertencia ao seu mundo. Moça fina, de família abastada, elas se conheceram numa das vezes que acompanhou a mãe numa entrega de trouxa.
Eram adolescentes e Margarida ao ver Rosa quis conversar com ela, mostrou-lhe o quarto, suas revistas, Rosa ficou encantada com tudo que viu. Um quarto só dela. Pensava. Mas não invejava, sabia respeitar as posições e os espaços. Ficaram amigas.
Rosa se encantava com as roupas de Margarida e volta e meia ela ganhava uma. Margarida gosta muito de ler e empresta muitos livros para a amiga. Romances, poesias e contos. Rosa viaja na fantasia deles, sonhando com as histórias lidas.
Rosa é romântica, espera um dia ser amada e respeitada e será com certeza uma boa dona de casa. Sabe cozinhar, lavar, passar, cuidar de criança, pois cuidou do irmão e ainda cuida. Sabe até bordar, aprendera com as companheiras do tanque. Com certeza haveria de casar e ser feliz.
A amiga era moderna, já tinha ido até para Paris com os pais, falava francês e namorava um rapaz de família rica que estudava para ser advogado, mas apesar de tudo isso Rosa sentia que sua amizade era sincera. Margarida por diversas vezes lhe falara da importância de se ter uma amiga fiel, que não invejasse nem disputasse, que fosse cúmplice e que guardasse segredos. Dizia também que nunca tinha encontrado ninguém assim em seu meio, por isso a amava de verdade e que ela poderia contar com a sua amizade para sempre. Um dia falou para Rosa;
- Acho que nossos espíritos são simpáticos, talvez tenhamos sido amigas em outra reencarnação.
- Reencarnação? Perguntou Rosa.
- Sim, você não acredita? Nós não vivemos só uma vez. Você Rosa, deve ter vivido muitas vidas, pois é bondosa e seus olhos brilham como as estrelas e as estrelas são tão antigas, mesmo as que achamos que surgiram agora, já terão muito tempo.
Rosa ficou pensativa, queria saber mais, mas a mãe de Margarida as chamou para o lanche e a conversa parou.
Margarida tinha razão, Rosa era tudo isso. Espírito de elevado porte há muito já superara as tentações, optando sempre pelo justo. Não via as peripécias da vida como expiações, sempre as recebia como provas a ultrapassar. Não desanimava, não maldizia, não desejava nada além do que podia.
Rosa era força escondida na sua fragilidade, era rocha camuflada em seu corpo esguio, era amor puro a destilar paz por onde passava. Por isso atraía admiração, respeito e desejo.
Para uns desejo angelical, para outros desejos animal. Era à força da atração que inconscientemente une as pessoas.
Mesmo parecendo estranho a força do bem atrai de alguma forma a forma do mal, uma tem a intenção de redimir enquanto que a outra de destruir. Essa é a luta.
Assim, Rosa que atraiu Manuel ao mesmo tempo atraiu Toninho. E Manuel que atraiu Rosa, ao mesmo tempo atraiu Sara. Essa é a lei, assim a vida evolui naqueles que superam e naqueles que sucumbem, pois se os bons só atraíssem os bons e os maus só os maus, nada mudaria e a evolução se comprometeria.
O Pai em sua perfeição não isolou os anjos, deu-lhes a missão junto aos caídos.
Rosa é esse anjo em missão. Seu destino ainda lhe guardava muitas lágrimas, mas que saberá enxugá-las com a força adquirida de séculos de reencarnações.
Alguns anos se passarão até que Margarida volte a conversar sobre esse tema com Rosa. No tempo necessário em que essas explicações darão força ao coração de Rosa.

Queridos amigos a pedidos colocarei dois capítulos de cada vez a cada terça-feira, pois um capítulo por vez a leitura se estenderia por um tempo muito grande. Agradeço a todos e espero que estejam gostando. Fiquem com Deus Valéria Ribeiro.

Capítulo V

Manuel chegara ao botequim e logo se pôs à providência. Não era um lugar pequeno, mas era bagunçado. Seu patrão há muito não se importava mais com os cuidados com o comércio, deixava quase tudo em suas mãos, mas não estimulava a organização e o asseio. Sempre dizia:
- Não mexa com isso Manuel, no balcão é que o dinheiro entra.
Manuel não compreendia essa ideia, pois sempre soube que a limpeza, a organização e a gentileza é que eram responsáveis pelo aumento da freguesia. Mas, seu Joaquim se satisfazia com a frequência diária dos famintos e bêbados, e demais não lhe exigiam muito, as médias pela manhã, as cachaças ainda cedo se estendendo pelo dia até a noite, o cigarro, o prato feito no almoço e os petiscos de balcão. Apenas ovos cozidos, algumas sardinhas e a carne assada, tudo providenciado por sua preta com alegria. Nada mais.
Manuel sonhava com o dia em que o estabelecimento fosse seu. Num ponto privilegiado do centro da cidade, com certeza sua padaria faria sucesso. Trabalhava duro, fazia o serviço de mais dois homens, pois convencera Joaquim a não contratar mais ninguém, assim ganhava mais um pouco. Era puxado, mas organizando o seu tempo, conseguia cuidar de tudo. Essa era a oportunidade, não poderia deixar passar.
Uma vez por semana ia a Copacabana, na padaria em que um amigo seu trabalhava, só para aprender mais coisas. Chegava lá ainda às duas da manhã, pois os pães eram preparados na madrugada, tinham que descansar a massa. Assim, aprendeu a fazer bolos e confeitá-los, roscas, pães doces de vários tamanhos e recheios. Há três anos que frequentava essa “escola” culinária e o seu sonho cada vez mais ficava possível. Já tinha até criado algumas variedades de doces, que faziam sucesso. Neste dia ficava exausto, mas a alma se alegrava com as possibilidades futuras. Queria vencer, tirar Rosinha daquela vida, casar, ter filhos e ser feliz.
Já tivera esse pensamento antes com Sara, mas há muito seu lugar foi substituído por Rosa. Foi se afastando de Sara, aos poucos, não queria magoá-la. Entendia sua vida, suas escolhas. Também era sofrida, conhecia sua história. Eram cúmplices no sofrimento, mas Sara era esperta, saberia se safar nas peripécias da vida, Já Rosinha não. Inexperiente, reservada, precisava de alguém que lhe cuidasse e isso o atraía, lhe fazia se sentir homem, provedor e protetor.
Lembrava-se de sua mãe, meiga, sempre frágil. Morrera cedo, seu organismo não aguentou a luta do desprovimento. Não queria isso para Rosinha, ele haveria de protegê-la e fazer dela sua mulher e mãe de seus filhos.
Manuel pensa que tudo está bem, não percebeu o veneno do ciúme em Sara. Ele não tinha ideia da capacidade destrutiva de um coração partido de mulher cujos sonhos estavam calcados em suas expectativas futuras. Ele era a esperança dela e isso a fazia  leoa, não o perderia por nada.
Quando saiu de Portugal, ainda adolescente, não pensava em se casar, tinha tido uns namoricos sem consequências, era jovem, seus hormônios pediam aqueles abraços e beijos. As raparigas, meninas moças, deixavam transparecer o desejo contido por trás da postura de meninas de bem. Na verdade eram mais espertas que ele e muitas vezes se deixou envolver na sedução de suas manobras.
Esmeralda era uma delas, bonita e faceira, roubava-lhe beijo ardente nas sombras frescas das videiras.
Mas sua vida não era fácil. Era pobre, seu pai morrera cedo embriagado pelo vinho vagabundo da pobreza e sua mãe frágil e doente, não aguentou a viuvez e também um ano depois foi levada dessa vida para a paz do túmulo. Fez-se só e seduzido pelos sonhos numa terra distante, juntou-se a um grupo que, em troca de trabalho aceitara embarcar num navio para o Brasil. Terra dos sonhos de quem procurava melhorar a vida.
Era histórica a fama dos brasileiros de boemia e vida preguiçosa, assim diziam que o trabalho sobrava para quem não o temia. Neste conceito muitos patrícios vieram em busca de que, ao substituírem a mão de obra recusada pelos brasileiros, pudessem encontrar riqueza e prosperidade. Triste engano, pois o trabalho recusado era duro e mal remunerado e a falta de estudo dos patrícios não lhes permitia encontrar a tão sonhada fortuna, então muitos desistiam, também se tornando boêmios, malandros e delinquentes. Era o caso de Toninho e outros.
Eram feitas campanhas de incentivo ao trabalho, as oportunidades eram apresentadas e sempre se ouvia falar nas propostas nas frentes  produtivas das fábricas e na obras, pois se vivia uma década de necessidade industrial, as dificuldades nas exportações e importações faziam com que alguns países procurassem incentivar as indústrias, era o caso do Brasil. Mas a discriminação também era vista de maneira clara nas seleções e o nepotismo corria solto, assim só se conseguia alguma colocação com indicações. Dessa forma, os grupos se uniam e imigrantes de todas as espécies se ajudavam como podiam. Judeus, alemães, espanhóis italianos e portugueses cultivavam seus costumes e preservavam sua gente. Mas era uma explosão de imigrantes.
A agricultura em crise fazia com que muitos, principalmente os italianos, procurassem as cidades, tornando São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro uma possibilidade.
Também era assim com os portugueses e aqueles que de alguma forma conseguiam crescer, davam preferência aos patrícios, mas a mão de obra era dura, pois em sua maioria os portugueses se estabeleciam em botequins, padarias, transportes e sucataria. Muitos também eram sapateiros e alfaiates. Mas em seus negócios pequenos, poucas eram as vagas. Isso se referindo aos pobres que vieram, pois muitos descendentes dos nobres se estabeleceram ricamente e faziam parte de uma seleta sociedade.
Getúlio Vargas governava com mão de ferro numa “ditadura disfarçada”, mas fez muita coisa pelo povo e era querido. Criara as leis trabalhistas, estabelecendo normas de horário e registro. Incentivava as artes, a literatura e o teatro, fazia um controle, é certo, pois as usavam como forma de promoção. Queria a industrialização e apoiando a educação estimulava o ensino tecnológico. Mas Manuel não se sentia mais animado para o estudo, precisava ganhar a vida e sua única esperança era a padaria que residia em seus sonhos.
A Lapa abrigava a boemia, a música e as farras. Mais para o centro podiam-se ver os intelectuais e a formação da literatura nas letras e nos sonhos. Grupos da imprensa, discursistas e idealistas. Era esse o público que Manuel queria conquistar. Pensava em fazer um espaço para um café mais agradável, onde esses homens e mulheres pudessem se encontrar para a troca inteligente. Conhecia a confeitaria Colombo, sempre que podia ia lá só para se deliciar com sua majestade. Era frequentada pela mais alta extirpe carioca e até Getúlio, sabia ele, era presença em suas dependências. Quem sabe, um dia a sua padaria não guardaria a beleza, delicadeza e magia a exemplo dela? Afinal ela surgiu pelas mãos de patrícios, era uma herança portuguesa. Sonhava acordado se deliciando com ele.
Já passava das nove quando Manuel chegou em casa. Encontrou Toninho ainda no quarto e estranhou.
- Não acredito! Ainda não saiu? Está doente?
- Que nada! Apenas não me sinto disposto à farra hoje.
- É de se estranhar, nunca te vi perder uma noite na Lapa.
- Não vai ter com Sara não?
- Deixa disso Manuel, até parece que quer me ver pelas costas.
Manuel desconfiava, não gostava de ver Toninho muito por lá, tinha receio por Rosa. Temia suas inesperadas atitudes de quietude, mais parecia teatro para rodear Rosa. Mas estava muito cansado, precisava dormir, sabia que com Toninho no quarto isso seria um pouco difícil e teria que acordar ainda de madrugada para ter com o amigo na padaria em Copacabana. Comeu alguma coisa e foi deitar-se. Deixou seus pensamentos levá-lo à sua futura padaria, pois era isso que no momento importava para ele.
Seis meses se passaram naquela rotina diária. A polícia parecia que não se importava mais com a morte do cabo Ferreira, tinham muitas outras coisas para fazer, pois os rebeldes não os deixavam uma folga e Getúlio rodeado pelo fantasma inimigo, vigiava com olhos de lince e mãos de ferro. Os artistas, embora controlados, sempre arrumavam um jeitinho de ironizarem o governo, com piadas, músicas, caricaturas, etc.
Toninho cada vez mais envolvido na boemia e malandragem, quando soube da fuga de Sara praguejou e amaldiçoou-a, mas logo deu de ombros e seguiu adiante.
- Infeliz dela! Dizia Toninho para todos que perguntavam com ironia.
- Será que foi por causa dela que cabo Ferreira foi morto? Diziam desconfiados. Será que foi por isso que ela sumiu? Perguntavam irônicos.
Mas Toninho se fazia de surpreso e desconversava. Não conseguiram provar nada contra ele e a investigação acabou na “gaveta”.
Manuel também estranhou o desaparecimento de Sara, mas achou que decerto ela teria conhecido alguém que a tirara daquela vida. Ninguém sabia para onde ela tinha ido. Ele nem imaginava o envolvimento de Toninho na morte do cabo, embora já tivesse ouvido um zumzumzum a respeito, mas achava que Toninho não chegaria a esse ponto. Há muito que os dois não conversavam sobre os assuntos da noite, pois sabendo que Manuel não compactuava com suas atividades ilícitas,  Toninho evitava estar detalhando acontecimentos e coisas que, sabia, via e participava nas noitadas.
No começo era até divertido. Os pequenos trotes, as manobras com as raparigas, as bebedeiras, os carteados, Manuel até participava dessas noites boêmias.
Manuel, Sara e Toninho, muitas vezes se escangalhavam de rir dos velhos babões que Sara enganava com seu charme. Eram tempos brejeiros, podiam-se dizer até inocentes. Mas Manuel tomou novo rumo, nova perspectiva e nesta nova estrada já não tinha tanto tempo para esses amigos. O trabalho era mais importante, o sonho saturava todo o seu tempo e a fantasia de um dia ter Rosa somente em seus braços o alimentava e o empurrava para o desejo de uma vida reta e feliz. Não cabiam mais em seus pensamentos os amigos de outrora.
Mas Manuel não percebeu que seus caminhos estavam traçados, eram resquícios de vidas que não foram aproveitadas em colaboração para o bem. Grandes comprometimentos ainda rondavam pedindo ajustes. E embora Manuel traçasse em seu destino futuro realizações onde não encaixava esses amigos, eles ainda terão posições fortes em sua vida, desenvolvendo caminhos tortuosos e colocando à prova sua necessidade de evolução.
Não havia nem amanhecido quando recebeu o recado. Joaquim tinha tido um mal súbito e não resistira. Morreu ao dar entrada no posto de atendimento. Preta desesperada pediu a ajuda de Manuel. Ela não tinha família, eram só ela e Joaquim.
- E agora? Gritava ela.
- O que vai ser de mim?
Manuel a abraçou e prometeu não abandoná-la.
Há muito não tinha presenciado um enterro tão triste. Preta amava seu português e a tristeza, angústia e medo se estampavam em seu rosto.
Preta era uma negra de seios fartos e ancas largas. Joaquim a venerava. Eram simples e amorosos e nunca brigavam. Tudo que preta fazia era com amor. Moravam nos fundos do botequim que Joaquim comprou a custo de muito trabalho. Não tinham filhos e por vezes falavam com Manuel no carinho que tinham um com o outro. Por isso ele foi a primeira pessoa a quem preta recorreu neste momento perdido de sua vida.
Embora envergonhado, Manuel só conseguia pensar no estabelecimento, como seria agora? O que preta faria? Será que manteria a promessa de Joaquim de vender para ele?
Desviava esse pensamento, era egoísta neste momento de dor, mas seu coração batia forte, não esperava tão grave acontecimento. Já possuía quase toda a quantia para a compra, mas ainda queria juntar mais um pouco para as obras que pretendia fazer.
Neste dia o botequim não abriu Preta não assou a sua famosa carne e na porta do estabelecimento se fez colar um bilhete de luto.
Pela primeira vez em muitos anos, Manuel não sabia o que fazer num dia de folga. Ainda nem sabia se Preta ia abrir no dia seguinte. Sua cabeça borbulhava de dúvidas.
Foi procurar Rosa, de certo ela haveria de ter uma palavra de conforto e esperança para ele.
Rosa ao saber do acontecido também se preocupara com Manuel. Amava-o muito e queria o melhor para ele. Sabia dos seus sonhos, do desejo de vencer. Em seu coração batia a vontade de abraçá-lo e de lhe dar carinho e força. Onde estaria agora? Decerto perdido. Assim que viu Manuel correu para ele.
- Manuel, estava preocupada com você. Como aconteceu tudo?
- Que bom te ver Rosinha! Estou muito triste e penalizado com Preta. Seu Joaquim era tudo que ela tinha e está desolada a pobrezinha.
- Amanhã irei até lá para saber o que ela pretende com o botequim.
- Será que ela sabia dos planos do Seu Joaquim para vender o botequim para você?
- Ainda não sei e me desespero só de pensar que Preta pode não querer vender mais ou que venda para outro pretendente. Ah Rosinha, sei que é cruel, mas não penso em outra coisa.
Manuel encostou a cabeça no ombro de Rosa e começou a chorar. Rosa não sabia o que fazer, acariciou seus cabelos e com a voz suave disse.
- Manuel, não perca as esperanças, você é um bom homem e merecedor de toda felicidade, não desanime, pois que se esse for o seu destino, com certeza se cumprirá. Caso contrário, de qualquer maneira um dia a sorte lhe abrirá um sorriso. Pode contar comigo, estarei sempre ao seu lado.
Manuel não acreditou no que ouvia certamente aquelas palavras refletiam uma amizade querida entre eles, mas a última frase não lhe dava dúvida, Rosinha gostava dele. E sem perda de tempo disse:
- Rosinha, eu te amo, todos os meus planos eram pensando em você. Não quero lhe oferecer um futuro de privações. Tinha muitas esperanças em comprar o botequim do Seu Joaquim e transformá-lo em uma padaria, a minha padaria, o nosso futuro. E num impulso a beijou longamente sendo correspondido por ela entre lágrimas de tristeza e alegria, selando o início de um futuro e tendo a certeza de que era correspondido. Por um momento Manuel esqueceu a frustração de que passara e se entregou àquele momento desejado há muito por ele. Rosinha em seus braços, o que poderia ser melhor?
Subiu para o quarto e adormeceu, em seus sonhos lindos campos cercado de flores, ele e Rosinha juntos num só coração. Mas pesada lama escorreu pela colina manchando aquele campo florido e num som distante o choro de uma criança. Rosinha desesperada corre em busca daquele som e Manuel se vê inundado pela lama até ser totalmente enterrado. Acordou na manhã seguinte molhado de suor, seu peito arquejava numa respiração difícil e rápida. Levantou da cama num pulo, mas cambaleando e sentando-se na beira da cama observa Toninho na cama ao lado dormindo suavemente. Não sabe por que, mas teve uma impressão ruim ao avistar Toninho, era como se aquela lama descendo tivesse alguma coisa a ver com ele. Com dificuldade levantou-se e foi lavar-se, precisava enfrentar esse dia que provavelmente seria decisivo em sua vida.

Capítulo VI

Sara sem querer perder tempo correu para retornar ao novo emprego. O salário não era lá essas coisas, mas teria casa e alimento, seu dinheiro seria inteirinho para ela e se esforçaria para mantê-lo até o dia em que retornaria para o Rio de Janeiro. Não esquecera Manuel e não desistiria de seu propósito. Com certeza, as coisas iriam esfriar e ela poderia voltar. Combinara com uma colega da Lapa que manteria contato e assim ficaria sabendo de tudo.
Quando retornou ao novo emprego encontrou Murila lhe esperando que sem rodeios disse;
- Sara, não vamos perder tempo, vou te mostrar a casa e te explicar o serviço. Hoje Odete está dando um jeito em tudo, mas será você a responsável pela limpeza e organização de toda a casa. Terá que ser dinâmica, pois as refeições serão servidas por você. Uma vez por semana Marina e a filha vêm fazer uma faxina geral e as roupas são lavadas e passadas por uma lavadeira que vem duas vezes por semana para esse fim. Portanto deverá ser eficiente na limpeza, o patrão é exigente, é de reparar e reclamar.
Sara quis perguntar pelas outras pessoas da casa, mas Murila a interrompeu dizendo que detestava fuxico.
A casa era em estilo colonial, muito rica na decoração e bastante ampla. No andar superior tinha quatro quartos, todos com banheiro. Cada quarto era decorado lindamente, cada um com uma cor diferente, mas em tonalidades sóbrias. As janelas eram largas e eram cobertas por cortinas brancas rendadas. O quarto do patrão era enorme, possuía outro quarto só para as roupas, sapatos, chapéus. Tinha um lindo espelho e espaço suficiente até para dormir no chão. Sara nunca tinha visto aquilo. Seus olhos brilhavam de encantamento. No térreo havia três salas, uma de jantar, uma de visita e uma ante- sala que Sara não sabia para que servia. A biblioteca era um encanto, todas as paredes tinham estantes repletas de livros, uma mesa enorme e quatro poltronas confortáveis. Os quadros eram deslumbrantes e todos os objetos de decoração de muito bom gosto e requinte. O jardim era extenso, lindamente decorado com pequenas árvores e muitas flores. Possuía uma garagem espaçosa onde estavam estacionados dois carros. O motorista havia saído para levar o patrão no carro mais bonito que Sara havia reparado pela manhã. A piscina era enorme e límpida. Sara reparou que não tinha nada que lembrasse criança e sua curiosidade fervia em sua mente.
Já eram quase sete horas da noite quando o patrão chegou. Imediatamente Odete foi providenciar os preparativos finais para o jantar e Murila correu para lhe preparar o banho. Novamente Sara percebeu que a casa estava vazia, sem esposa, sem crianças. Ficou no quarto arrumando as suas coisas. Odete lhe mostrara o lado do armário que iria ocupar e a cama que seria dela dali por diante. Dividiriam o quarto. Odete dissera a ela que o trabalho era puxado, mas agradável, ficavam sozinhas a maior parte do tempo e ninguém as incomodaria. Murila era uma espécie de governanta secretária do Doutor Alberto e era ela quem se dirigia a ele para todas as providências. Sara não se conteve e perguntou se o patrão não era casado e se tinha filhos. Odete abaixou a cabeça e disse;
- Esse assunto é delicado, o Doutor Alberto é viúvo, sua esposa morrera no parto e o neném não vingara. Isso já havia acontecido há dez anos, mas ele nunca mais se casara.
- Mas e namorada? Não tem? Perguntou Sara.
- Não que conhecemos, o Doutor Alberto é muito discreto, raramente conversa com os empregados, tudo é resolvido com Murila.
Sara, não conteve o espanto.
- Sabe Sara, de imediato não reparei, mas você é muito parecida com a Dona Elizabete, esposa do Doutor Alberto que faleceu. Murila não reparou, pois ela não conheceu Dona Elizabete. Murila veio trabalhar aqui três anos depois que o Doutor Alberto ficou viúvo, pois ele viajou para a Europa e ficou lá todo esse tempo. Só quando o pai dele morreu é que ele voltou para cuidar dos negócios. Então contratou Murila para cuidar de tudo. Eu trabalho com ele desde que ele se casou, era ajudante da cozinheira dos pais dele, por isso vim para cá.
- E a esposa dele como era? Perguntou Sara.
- Ah, ela era um amor de pessoa, educada, meiga e elegante, mas também era simples e tratava todo mundo com carinho e respeito. Eles se amavam. Quando ela ficou grávida então, que alegria. Essa casa irradiava felicidade. Depois que ela morreu o Doutor Alberto se fechou no mundo dele e raramente recebe visitas. Cuida dos negócios da família, pois a irmã mora em Paris com a mãe. Quando elas vêm passar alguns meses aqui, aí sim a casa se alegra. Ele vai pelo menos uma vez por ano visitá-las.
Sara estava impressionada. Nunca tinha ouvido nada igual, aquela história mexeu com ela e a curiosidade de ver alguma foto da esposa do Doutor Alberto a excitava.
Passou uma idéia pela sua cabeça que se desse certo, ela estaria feita para o resto da vida. E à noite, quando se recolheram, perguntou a Odete se tinha alguma foto da antiga patroa, ela estava curiosa para ver como ela era, já que se parecia com ela. Odete sabia que no armário do patrão tinha uma foto e prometera mostrar a Sara. A ansiedade era tanta que Sara quase não dormiu naquela noite.
Na manhã seguinte Sara procurou ser o mais discreta possível, o uniforme escondia seu corpo escultural. Procurou manter o cabelo preso e a toca disfarçava qualquer possibilidade de evidenciar a beleza morena de seu rosto. Evitou olhar o patrão, queria ver primeiro como era a sua esposa. Sua cabeça matutava o plano que seria a chave de seu futuro.
Assim que o Doutor Alberto saiu, depois que  tirou a mesa e se certificou que Murila tinha saído, foi chamar Odete para que lhe mostrasse a foto. Foram ao quarto e Odete pegou uma caixa numa das estantes do trocador, abriu e foi tirando algumas fotos de dentro. Sara soltou um grito de espanto e Odete começou a rir. Realmente a semelhança era impressionante, a diferença era só na forma do penteado e nos traços mais cuidados de Elizabete. Um detalhe aqui e outro ali e ficariam iguaiszinhas. Sara não conteve a gargalhada e Odete num repente não gostou muito de seu comportamento. Pegou a foto, rapidamente guardou e disse;
- O que está pensando menina? Você pode ser parecida com ela, mas nunca será ela.
Sara dissimulou e respondeu:
- Cruz credo Odete, o que está pensando?
- Nada, respondeu a cozinheira desconfiada. Mas o que Odete não sabia era que justamente o que lhe passou pela cabeça era o plano de Sara.
- Não comente dessa semelhança com Murila não, Odete, ela pode implicar e me demitir, preciso do emprego. Pediu Sara.
- Não falarei, mas se comporte, hem! E cada uma foi para a sua obrigação.
Sara não parava de pensar naquilo, sua cabeça arquitetava o plano em seus detalhes. Tinha que arrumar um jeito do Doutor Alberto reparar nela, mas não agora, não de uniforme, haveria de dar um jeito de encontrar com ele fora dali, arrumada e, de preferência, o mais parecida possível com sua antiga mulher.
Mas o Doutor Alberto já tinha reparado nela, gostara dela assim que a viu no primeiro dia, percebeu a semelhança dela com a sua Elizabete e não conseguia tirar de seu pensamento aquele rosto, o mesmo que vira em sua mulher quando se conheceram naquela praia. Quantos anos essa empregada teria? Quando conheceu Elizabete ela tinha vinte e quatro anos, ele quinze anos mais velho se encantou com a juventude dela, seu frescor, seu encanto. Estava agora com quarenta e nove anos. Nunca mais pensara em se casar. Amava loucamente a esposa e não conseguiria substituí-la.
Tentou algumas vezes se envolver com outras mulheres, mas não se apaixonara por mais ninguém e quando falavam em compromisso, se afastava. Mas agora, era como se voltasse no tempo, aquela moça era igual à Elizabete. Tinha até as covinhas no rosto. Estava realmente impressionado.
Esforçava-se para manter a discrição, não queria assustá-la. Mas, daquele dia em diante, ia fazer tudo para conhecê-la melhor. Nada falou com Murila, não queria polêmica. O que ele não sabia era que Sara já arquitetara todo o plano para os dois e seu futuro já estava selado no dela.
Os dias iam se passando e Sara ia aprendendo cada vez mais sobre Elizabete. Convencera Odete a lhe ajudar. Disse que não forçaria nada, que deixaria a cargo do Doutor Alberto. Se ele a notasse, o que teria de mais? Afinal ele estava só. Por que ela não poderia ter essa chance na vida? Sara teve sorte, pois Odete gostou dela. Sempre tivera uma vida dura e a possibilidade de alguém da situação dela poder mudar de vida a fez gostar da idéia de ajudar Sara. Então, travaram uma verdadeira estratégia para que o Doutor Alberto se interessasse por Sara sem desconfiar dos planos delas.
Não foi difícil fazer com que ele olhasse para ela porque ele já tinha reparado nela desde o primeiro dia. Notara a semelhança com Elizabete e estava suscetível de ser conquistado.
Odete procurou ensinar a Sara tudo que sabia e se lembrava do jeito, comportamento, gostos, mimos e tudo que fizesse com que Sara conquistasse o doutor Alberto. Sara treinava, mas conservava algo de seu para que não ficasse artificial e falso e, sempre que podia, procurava se aproximar do patrão, forjando situações em que ele precisasse falar com ela.
Mesmo nos dias de folga, Sara não saia da mansão, mas circulava sem o uniforme para que fosse vista em seus dotes e gostos. E assim, passados oito meses, finalmente aconteceu o que Sara esperava.
Após o jantar Alberto pediu que ela permanecesse na sala e que lhe servisse um licor.  Pediu que escolhesse uma música e colocasse para tocar. Sara já sabia do gosto de Elizabete e colocou Frank Sinatra para tocar.  Alberto não se conteve e num repente puxou-a contra si e a beijou. Num momento de nostalgia pronunciou o nome de Elizabete. Sara nada falou, correspondeu ao beijo e os dois subiram para o quarto. Foi uma noite inesquecível para os dois. Alberto se realizou nos braços da mulher que encarnava a sua Elizabete, só que mais quente, mais ousada, mais sex, mais voluptuosa. Sara se realizou nos braços daquele homem em que nada parecia com os homens com quem deitava. Ele a encheu de gentileza, ternura, a tratou delicadamente, se entregando a ela com  paixão, ardor e respeito. Sara, ali, não se sentiu uma prostituta, mas uma mulher amada. Se não amasse tanto Manuel, diria que Alberto era o seu príncipe encantado.
Desse dia em diante ela passou de empregada a patroa, conquistou a todos na casa e segurou com unhas e dentes a chance dada a ela.
Entretanto em seu íntimo vivia Manuel e o desejo de um dia poder tê-lo definitivamente para ela. Mas, não foi uma esposa ruim para Alberto. Sua delicadeza, amor e veneração desarmavam Sara que se deixava levar pelos mimos dele. Aproveitou cada momento, as viagens, os presentes. Aprendeu muitas coisas e se adaptou perfeitamente àquele mundo tão diferente do seu. Nunca envergonhara Alberto. Conquistou a sogra, a cunhada e Murila, que inicialmente ficou desconfiada, mas logo caiu nos seus encantos.
Embora Alberto pedisse filhos, Sara se prevenia e colocava a culpa no destino. Não queria colocar filhos no mundo, queria ser livre para que se um dia voltasse a conquistar Manuel não teria impedimento nenhum.
O casamento durou sete anos e meio e Alberto acometido de um infarto, morre deixando Sara viúva e milionária. Sara sofreu sinceramente a perda do marido. Ele foi para ela tudo que ela nunca teve na vida e a fez olhar os homens de forma diferente, assim como Manuel a fez ver um dia. Mas agora livre, seu plano de reconquistar Manuel surgiu com toda a força e aguardaria somente as providencias necessárias para que pudesse voltar finalmente para o Rio de Janeiro.
  



Capítulo VII

Rosa não saiu do lugar, ficara estática diante daquele beijo e daquela declaração. Após a saída de Manuel para o quarto ficou um bom tempo ali pensativa. Ele a amava. Nem saberia dizer o quanto estava feliz. Manuel era tudo o que queria um bom homem, trabalhador, meigo e gentil. Seriam muito felizes juntos. Pediria a Nossa Senhora de Fátima que o iluminasse neste momento delicado em que o seu futuro estava sendo traçado. Ele precisaria de muita sorte para levar seus planos adiante, caso Preta decida cumprir a promessa do senhor Joaquim. Após longo tempo, ela voltou para o quarto e foi dormir.
No dia seguinte Rosa decidiu ir pessoalmente entregar as roupas da senhora Ana, queria muito falar com Margarida, contar-lhe o que aconteceu, falar de seus sonhos. Margarida sempre a ouviu com interesse e bondade. Era uma amiga especial, a única amiga que tinha. Percebeu que Patricinho não dormira em casa, ficou preocupada e decidiu ter uma conversa séria com ele. A mãe, já acordada, estava na janela. Não conseguia tirar a mãe do estado depressivo em que se encontrava. Por mais que tentasse distraí-la, conversando e levando-a para passear, ela não saía daquele estado. Vivia a olhar pela janela na espera de algo. Rosa imaginava que era do pai, mas não dizia nada, pois tinha certeza que era essa espera que ainda a mantinha viva. Foi procurar por dona Maria.
- Bom dia, tia.
- Bom dia Rosinha, tudo bem? Já está arrumada? Vai sair?
- Vou. Preciso entregar as roupas de dona Ana e vou aproveitar para conversar com Margarida. A senhora viu  Patricinho hoje? ele não dormiu em casa, esse menino ainda vai se meter em encrenca.
- Vai ver dormiu na casa de algum colega.
- Mas não podia avisar? Sabemos que mamãe não anda reparando muito, vive num mundo à parte, mas eu estou aqui, precisa me respeitar sou sua irmã e me sinto responsável por ele.
Neste momento Toninho vinha descendo as escadas e ouviu tudo.
- Bom dia Rosa? Está tendo problemas com Patricinho? Não se preocupe às vezes a falta de um homem faz com que nossos jovens se sintam autos suficientes, esquecendo de que devem respeito e consideração pelas mulheres da família. Deixa comigo, vou conversar com ele. Toninho pensou que essa poderia ser uma oportunidade de agradar a Rosinha e conquistar a sua confiança.
- Fico agradecida Toninho. Respondeu Rosa.
Mas ficou pensativa, sabia da fama de Toninho e não confiava muito nos seus conselhos, mas em todo caso, era melhor que um homem experiente como ele conversasse com patricinho, dessa forma poderia abrir um pouco os olhos dele para as responsabilidades.
A vida era muito difícil e não conseguia ver um futuro muito promissor para o irmão e mesmo com todas as roupas que lavava, não seriam suficientes para que um dia pudessem sair dali para um canto deles, uma vida mais independente e com mais privacidade. Tinha muita consideração com dona Maria, agradecia a sua ajuda e proteção, mas sonhava com um lugar só seu e, de preferência, longe daquele reduto, pois isso também ajudou para que o irmão se metesse na malandragem. Saiu com aquela preocupação na cabeça. Toninho lhe oferecera ajuda, mas ela preferiu ir sozinha, queria ir sem pressa para conversar com a amiga.
Margarida morava no Flamengo, não era muito longe dali. Dona Ana a recebeu com o carinho de sempre. Gostava de Rosa e não se importava com a amizade dela com a filha. Até gostava, pois sempre percebeu que Rosa era diferente das coleguinhas da filha. Sempre educada, humilde, não abusava de sua confiança nem se aproveitava da afeição que Margarida tinha por ela. Sempre discreta e honesta. Tinha pena das condições desfavoráveis dela, já tinha até convidado Rosa para ficar lá morando com eles, mas Rosa não aceitara, disse que precisava ajudar a mãe. Isso a fez pensar na bondade daquela menina. Gostava mesmo de ela ser amiga de sua filha.
Margarida veio receber Rosinha. As duas se amavam muito.
Rosa foi logo contando à amiga o acontecido, falou de Manuel, do beijo, da declaração. Margarida ficou radiante. Sabia, a muito, dos sentimentos da amiga por Manuel e torcia para que eles se acertassem. Rosa nunca tinha tido um namorado. Gostava de Manuel e o esperava pacientemente. Ficaram alegres, horas conversando a respeito. Por um momento Rosinha comentou com a amiga a preocupação com a mãe, o estado depressivo em que se encontrava, não sabia mais o que fazer.
Margarida foi até a sua estante e pegou um livro. Deu a Rosinha dizendo para que abrisse em uma página todos os dias num momento de calma e lesse para a mãe.
Rosa pegou o livro e leu o título. O Evangelho Segundo o Espiritismo de Allan Kardec. Perguntou que livro era aquele. Margarida lhe explicou que aquele era um livro espírita, que ele trazia os ensinamentos de Jesus e que com certeza ia ser muito útil para ela.
Margarida já tinha falado alguma coisa sobre o espiritismo com Rosa, falara de reencarnação e sobre a afinidade que existia entre elas, possibilitando uma existência juntas.
- Talvez, continuou Margarida, seu pai possa estar desencarnado e esse processo em que sua mãe está pode prejudicá-lo muito e até atraí-lo para junto dela, se for o caso dele ter morrido. A oração é a melhor forma de melhorar a sintonia em que vocês vivem e se for o caso da obsessão o melhor jeito de amenizá-la.
- Meu pai morto? Obsessão? Estou confusa. Disse Rosa.
- Olha Rosa, é um pouco complexo para te explicar tudo agora. Mas leve o livro, abra, leia uma página diariamente. Você vai ver que as coisas vão se clarear em sua cabeça. Você é crente em Jesus. Vai lhe fazer bem. Depois aos poucos, vamos conversando a respeito e quem sabe te levo na casa de uma amiga cuja família é espírita para você saber mais.
- Mas agora me diga, vocês estão namorando? Já que Manuel se declarou.
- Não sei ainda, ele hoje vai resolver um assunto muito difícil para ele que pode custar todos os seus planos para o futuro. Mas de qualquer forma, ele se declarou e eu também. Acho que estamos namorando sim. As duas se abraçaram e se despediram.
Rosa voltou para casa. Levava o livro. Iria fazer o que a amiga lhe disse, pois ela era muito querida e com certeza queria o melhor para a sua família. Mas esse negócio de espiritismo a deixava confusa. Fora criada no rigor do catolicismo. Tinha muita devoção por nossa senhora de Fátima e achava esse assunto de espíritos muito estranho.
Quando chegou em casa sua mãe ainda se encontrava apática. Estava costurando umas roupas que precisavam de conserto. Eram pobres e não podiam comprar roupas novas sempre. Patricinho se revoltava com isso. Dizia que precisava de roupas novas, que as suas estavam sempre gastas e que se envergonhava diante dos amigos. Mas não fazia nada para ajudar, sempre estava metido em traquinagens e farras e se fazia um bico aqui outro ali gastava tudo nas farras. Patricinho estava em casa. Rosa lhe falou com seriedade sobre ter passado a noite fora e ele disse que estava na casa de um amigo.
Não quis revelar a ela que passara a noite em um bordel. Já tinha idade e os amigos o chamaram, era normal, mas respeitava a irmã e esse assunto não era para ser dito a uma moça de respeito.
Rosa aproveitou para conversar com ele. Falou do estado da mãe e da preocupação com o futuro dele e da família. Disse que tinha ido à casa de Margarida e mostrou-lhe o livro que ganhara. Patricinho ouviu calado, olhou o livro e nada disse. Não queria ser mal educado com a irmã, entendia aquela situação como desgraça do destino e não via nada que ele pudesse fazer para mudar aquilo. Ele era jovem e como ele, os amigos também não se preocupavam com isso. Saiu sem nada responder.
Rosa ficou triste e pensativa. Recordava o pai e imaginava que talvez as suas vidas pudessem ser diferentes se o pai não tivesse saído de casa para vir para o Brasil ganhar dinheiro. Afinal, não eram tão pobres assim quando moravam em Portugal. Tinham uma pequena propriedade e não lhes faltava o que comer. Por que a mãe resolveu vir atrás do pai? Abriu o livro que Margarida lhe deu e leu o capítulo XIV “Honrar pai e mãe”. Envergonhou-se dos seus pensamentos, pois com certeza tanto seu pai quanto sua mãe sabiam o que faziam, cabia a ela compreender e ajudar. Gostou do livro.
Patricinho sentou na entrada do cortiço, pensava em tudo que a irmã tinha lhe dito.  Toninho apareceu e chamou-o para conversar.
- Como vai Patricinho? Tudo bem?
- Por que pergunta? Nunca se preocupou. Disse Patricinho.
- Que isso rapaz? É que não gosto de me meter na vida de ninguém, mas hoje vi a Rosa muito preocupada com você e isso não é justo, ela trabalha muito, cuida de tudo e você finge que nada acontece? Você tem mãe, tem irmã, tem uma família. Olha para mim que não tenho ninguém, quer ficar igual a mim? Solitário e infeliz?
- Você? Infeliz? Todo mundo te respeita, vive rodeado de mulheres, como pode dizer que é solitário?
- Essa vida não me dá o que eu mais quero o amor de uma mulher especial. E o amor, Patricinho, é o que tem de mais importante nesse mundo, não os prazeres, não as farras, mas o amor puro e verdadeiro. Mas nenhuma mulher honesta quer um malandro como eu. Quer ser assim também?
Patricinho ficou parado sem dizer nada. Toninho aproveitou e continuou.
- Olha Patricinho, estou numas jogadas aí, vou precisar de pessoas de confiança. Vou te fazer uma proposta. Eu pagarei os seus estudos, vou precisar de um contador. Você passa a partir de agora a trabalhar para mim, fazendo pequenas entregas, pequenos trabalhos no horário que não seja do colégio. Poderá estudar à noite por causa da sua idade. Depois que se formar se tornará meu contador, ganhará mais e poderá ajudar a sua família. Que tal? Mas por enquanto não diga a Rosa que trabalhará para mim, diga que vai trabalhar em algum outro lugar, que vai voltar a estudar, essas coisas. Assim será melhor. Depois sim com um trabalho melhor, ela aceitará mais fácil. Que acha?
- Patricinho sabia exatamente quais eram os negócios de Toninho. Pensou e decidiu aceitar, afinal não seria de todo ruim, Toninho conhecia muitas pessoas, vivia na boemia, ia ser bom.
- Está bem, eu aceito. Quando começo?
- Segunda-feira, assim Rosa não desconfia.
- Tudo bem, até segunda.
- Até. Respondeu Toninho e se retirou.
Essa seria uma oportunidade de estar mais próximo de Rosa.
Toninho ainda não sabia das declarações de Manuel. Queria ajudar Patricinho. Não o envolveria nas armações perigosas, daria a ele pequenos trabalhos, nada que comprometesse. Esperava crescer nos futuros empreendimentos e um contador de confiança seria muito importante.
Percebera logo que Patricinho era esperto e suscetível aos procedimentos não convencionais. Se for para ele enveredar para esse lado, que fosse junto dele que o protegeria e o ensinaria as artimanhas dos “negócios”. Saberia preservá-lo das coisas mais pesadas. Amava Rosa e não queria o mal de seu irmão. Tinha esperança em um futuro com ela, afinal nunca a vira com ninguém. Por que não com ele?  Saiu para mais um dia de luta pela sobrevivência.
Ferreira observava no canto, queria saber onde isso ia dar. Não tinha nada contra Rosa e seu irmão, mas se precisasse ele os usaria contra seu inimigo. Até agora estava satisfeito, Toninho já estava fortemente envolvido na contravenção, afundado no caminho negro. Prostituição, jogos de azar, corrupção.
Agora orientava Toninho inspirando-o nas conquistas de áreas. Isso envolvia assassinatos e conquistas à força. O caminho estava traçado.
Daria a Toninho fama, dinheiro e prazer, mas também solidão, infelicidade, insegurança e comprometimento cada vez maior com as dívidas do destino. Ferreira sorria ironicamente enquanto seguia Toninho de perto em mais uma empreitada.





Capítulo VIII

Manuel chegou ao botequim que ainda estava fechado e foi para os fundos conversar com Preta, seu coração batia descompassadamente. Encontrou Preta na sala, sentada na poltrona que era a preferida de Joaquim, estava chorosa com um lenço na mão.
- Bom dia Preta. Como você está hoje?
- Bom dia Manuel. Não estou nada bem, a saudade não me deixa um só instante. Mas foi bom você ter chegado, quero lhe entregar uma carta que Joaquim deixou para que lhe entregasse caso lhe acontecesse algo.
- Coitado do meu Joaquim, sempre preocupado comigo, sempre dizia. -“Preta, nunca te desampararei” e eu lhe falava. -“Deixa disso meu português, eu é que nunca te largarei” e chorando continuou:
– Por que Deus levou meu português? Manuel ouvia emocionado disfarçando as lágrimas. Preta levantou-se foi até o quarto, pegou na gaveta do criado mudo um envelope e entregou-o a Manuel que pegou a carta, sentou numa cadeira e começou a ler.

“Manuel meu filho, se você está lendo esta carta é porque já não me encontro mais junto de vocês. Minha maior preocupação não era enriquecer, não era o luxo, não era a minha vida. Minha maior preocupação era com a minha Preta, pois ela era a minha vida. Quando a conheci já possuía o botequim, já possuía essa casinha nos fundos. Ela vinha aqui todos os dias comprar cigarros para o patrão. Trabalhava numa casa próxima daqui. Apaixonei-me por aquela moça, faceira, sorridente com as ancas largas. Um belo dia a convidei para morar comigo e para a minha surpresa, ela aceitou. Vivemos todos os dias o amor verdadeiro. Ela é minha flor e seu perfume levarei para a eternidade. Estou te deixando o botequim, não é necessário pagar nada. Só imponho a condição de jamais abandonar minha Preta, conservando a casinha para que ela nunca fique desamparada. Sei que você é um bom rapaz, sempre soube desde que veio aqui pedir emprego e já tinha resolvido passar para você o imóvel que se instala o botequim. Não iria vender. Sei que a sua intenção é valorosa e com certeza você vencerá. Eu também um dia tive sonhos, mas percebi que a vida simples com minha Preta era tudo que precisava. Não a deixe mais trabalhar, ela precisa descansar. Não a desampare, a trate como mãe. Você vai ver que realmente ganhou uma. Fique com Deus.” Joaquim.
Manuel não pode conter as lágrimas, releu a carta em voz alta para Preta, pois ela não sabia ler. Conversou longamente com ela, reafirmando a vontade de Joaquim. Nunca iria desampará-la a trataria como uma mãe querida. Beijou-lhe a testa e se despediu.
Saiu sem rumo, necessitava pensar, se refazer da emoção, precisava reanimar seus planos. Não conseguia acreditar no que acontecia. Seu futuro estava feito, seu sonho ia realizar-se. Não pensou que seria assim tão repentinamente. Precisava se recompor. Saiu e foi andar um pouco. Andou por vários lugares, foi até a confeitaria Colombo olhar novamente a princesa de seus sonhos. Foi a várias padarias, olhou cada detalhe de cada uma. Arquitetou em sua cabeça todos os pormenores que queria inovar em sua futura padaria e só retornou para casa à noite, exausto, mas recomposto. Já era tarde e não pode falar com Rosa. Foi dormir o sono dos justos, o sono dos felizes, o sono da esperança e do futuro.
Na manhã seguinte, Manuel foi imediatamente procurar Rosa para contar-lhe tudo, falar novamente que a ama e selar definitivamente o seu futuro junto ao dela.
- Dona Maria! A senhora viu a Rosa?
- Bom dia Manuel! Ela saiu, foi comprar pão.
- Perdoe-me, bom dia!
- Vou atrás dela, preciso lhe falar.
- Nossa Manuel, é tão urgente assim?
- Urgentíssimo, nosso futuro está em jogo. E, rindo, saiu porta a fora.
Toninho, devido à euforia de Manuel, acordou com aquela gritaria. Foi até a janela e pode ouvir as últimas palavras dele. Ficou pensativo. O que seria? “nosso futuro”? Precisava saber. Arrumou-se correndo e foi atrás de Manuel. Chegou a tempo de ouvir o diálogo deles.
- Rosa, meu amor! Tenho muitas novidades.
- Bom dia Manuel! Você já por aqui? E como foi lá com a Preta?
- Então, é isso que quero lhe falar. Foi tudo espetacular! Você nem imagina a surpresa, seu Joaquim me deixou uma carta. Até parecia que ele estava adivinhando.
E Manuel contou todos os detalhes para Rosa que, surpresa e feliz, ouvia tudo.
Toninho ficou perplexo com o que ouvira. Principalmente com as declarações de Manuel, a reciprocidade de Rosa, o entusiasmo de ambos. Levou um baque no peito, seu corpo todo esquentou, como se uma febre o atingisse de chofre. Não pode conter o sentimento de raiva e inveja que sentia de Manuel. Distraindo-se com esses sentimentos não percebeu que Rosa o tinha visto e falando com ele disse:
- Toninho, você por aqui tão cedo? Caiu da cama?
- É Rosa, respondeu sem graça. Tenho coisas a fazer.
- Devem ser muito importantes para te tirar da cama tão cedo, disse Manuel.
Toninho riu sem graça.
- Que bom, você vai ser o primeiro a saber, consegui o botequim e vou transformá-lo em padaria. E o que é melhor, assim eu e Rosa poderemos nos casar. Não é Rosa?
- Rosa ficou vermelha e sorriu em afirmativa.
- Parabéns! Disse Toninho se afastando e fingindo estar feliz.
Rosa e Manuel seguiram para casa, queriam contar a novidade para a mãe dela e para dona Maria, que torcia por eles.
Toninho seguiu para outro lado, não tinha nada para fazer naquele momento, mentira para disfarçar. Foi andando para o lado da Glória, precisava pensar.
No cortiço, todos ficaram muito alegres com a notícia do namoro de Rosa com Manuel. Dona Maria vibrou de alegria. A mãe de Rosa deu-lhes os parabéns, mas preferiu não sair do quarto, continuava triste e reservada. Patricinho nada falou, se sua irmã estava feliz, então para ele tudo bem, mesmo porque nada tinha contra Manuel.
Daquele dia em diante os dois traçariam planos felizes para o futuro, estavam oficialmente comprometidos e isso deu ânimo e força para que Manuel prosseguisse com seus planos.
Passados quatro meses, a padaria finalmente ia ser inaugurada. Estava linda. Manuel não poupou esforços nem fez economia para que tudo ficasse o mais perfeito possível. Inaugurou em grande estilo e não demorou muito para que ela se tornasse o ponto de encontro dos frequentadores do centro, eram homens de negócios, intelectuais, artistas e boêmios que não dispensavam o café especial que Manuel inventara para o desjejum. Não permitia que Preta fizesse nada, mas não conseguiu impedir que ela ensinasse aos padeiros o seu famoso pão de queijo que caiu no gosto de todos que frequentavam a padaria. E em um ano, Manuel já inaugurava a sua segunda padaria na Tijuca.
Em maio de 1936, três anos depois de inaugurar a sua primeira padaria, Manuel e Rosa se casaram numa cerimônia simples, mas bonita, na igreja de Nossa Senhora de Fátima. Tudo era um sonho.
Toninho nada fizera para impedir tal acontecimento, reservou-se a amargura de não ter Rosa. Respeitava-a em veneração e não a queria infeliz. Esperaria ela se decepcionar com Manuel. Conhecia o amigo muito bem e sabia dos desejos ardentes que possuía e, experiente como era, imaginava que Rosa não atenderia tais anseios sexuais de Manuel. Em algum momento ele falharia com ela, então resolveu esperar.  
Seus negócios prosperaram, mudou-se para uma casa ampla. Patricinho estava quase terminando o curso de técnico de contabilidade e já o ajudava com as contas. Não se sentia feliz, mas não tinha uma vida ruim. Não lhe faltavam mulheres nem dinheiro. Inimigos tinha muitos, mas sabia desvencilhar-se dos perigos, não caia em nenhuma armadilha e sabia comprar proteção, principalmente da polícia. Tinha muitos amigos políticos e seus negócios atendiam a todos fazendo com que quisessem ele mais vivo do que morto.
Toninho não percebia, mas a sua maior proteção era Ferreira que, atento, não deixava que nada lhe acontecesse, sua vingança ainda demoraria. Queria uma queda alta, sem condições de recuperação. Ferreira estava cada dia mais forte. Aprendera a lidar com o mundo em que estava agora. Seus ferimentos cicatrizaram e de alguma forma seus desejos unidos com os de Toninho o fortaleciam cada dia mais. Essa subjugação já durava quase quatro anos.

Toninho sentia que algo não ia bem com ele, mas achava que era o cansaço. Era preciso muito trabalho, astúcia e criatividade para que nada desse errado. Sua casa estava constantemente cheia de pessoas que o procurava para pedir favores. Entrou para o ramo carnavalesco e era o padrinho de uma escola de samba que representava a sua comunidade. Definitivamente, Toninho se sentia importante. Ferreira desfrutava dessa vaidade. Deleitava-se no orgulho dele, realizava-se em seu egocentrismo. Toninho adorava ser paparicado, homenageado, ver as portas se abrirem na sociedade restrita para ele. Convites, solicitações e presentes. Tudo isso o enchia de orgulho, o envaidecia, o fazia se sentir importante e indispensável. Mas também invejado e odiado.
Só não conseguia se sentir assim quando ia visitar Manuel e Rosa.
Manuel conseguira crescer financeiramente de maneira honesta. Quando casaram foram morar no bairro da Tijuca, numa casa grande e confortável, mas Rosa era simples, não fazia questão de luxo. Manuel não lhe negava nada, mas ela pouco lhe pedia. Sua mãe foi morar com ela, mas Patricinho preferiu continuar no cortiço, dizia que só sairia de lá para um lugar seu. Toninho invejava a vida de Manuel. Não pelo trabalho, que via que não era pouco. Manuel por anos dormia pouco, mal parava em casa, estava sempre ocupado. Trabalhava de segunda a segunda nunca folgava. Rosa tomava conta de tudo, não tinha empregados. Cuidava da mãe e de Preta, que estava doente.
Manuel, em agradecimento à dona Maria, providenciou uma reforma no cortiço, melhorando a casa. Tinha carinho por ela que sempre os tratara bem e era uma viúva solitária. Rosa a amava muito. Todos o adoravam por isso.
Toninho, no fundo, queria aquela vida. Reparara que a felicidade só não era completa para Manuel e Rosa porque eles não tinham filhos. Sabia que Manuel queria muito ser pai. Toda vez que ia visitá-los notava a tristeza de Rosa por causa disso. Sentia-se culpada e muitas vezes chorou em seu ombro.
Rosa não notava a intenção de Toninho. Gostava dele, eram compadres. Toninho foi o padrinho de seu casamento juntamente com Margarida. Não percebia os olhares dele para ela. Uma vez Margarida comentou que achava estranho o jeito que Toninho olhava para ela, mas Rosa afirmou que nada havia que ele nunca tinha tentado nada com ela e que eram amigos de longa data. Margarida não insistiu, mas sentia-se mal toda vez que encontrava Toninho na casa de Rosa. Os anos foram passando e as vidas correndo.
Maria das Dores esteve todo esse tempo olhando, protegendo e intuindo sua amiga. Sempre que podia encontrava Rosa durante o sono e lhe acalmava os ânimos.
Maria das Dores sabia que a estrada reservava caminhos tortuosos para Rosa e Manuel, eram necessárias as lágrimas que derramariam, eram provas a ultrapassarem.
Paralelamente, Maria das Dores acompanhava Sara em sua trajetória. Sabia do encontro desses seres e das amarguras que enfrentariam. Tentava através de seus superiores alertar Sara para que buscasse outros caminhos, para que não se comprometesse mais em dívidas. E o tempo ia passando e os caminhos se entrelaçando.


PARTE II


Capítulo I

Portugal, século XVI.

Hiago chega a cavalo perto do seu acampamento. Estava um alvoroço, um corre corre. Não percebeu, mas já o tinham visto. Numa pancada, caiu desfalecido. Quando despertou, uma cena horrível lhe avistava a frente. Homens, mulheres e crianças, muitos desfalecidos e feridos. Percebeu logo o ocorrido. Mais uma vez tinham invadido seu lugar e agora lhe parecia pior. Estava amarrado junto com vários companheiros. Em outro canto avistava algumas mulheres e crianças. Não via sua mãe Mercedes, nem seu irmão. Onde estariam? E Sula? Também não a avistara. Seu pulso doía, não conseguia se mexer. Ao seu lado estava Horton que sangrava na face. Só disse que tentara defender o seu povo, mas não pode, foram pegos de surpresa.
Desta vez não tinham dúvidas, foi traição de Herrera com certeza. Há muito tinha se vendido aos gadjós envergonhando todo o grupo.
Herrera não suportava ter que receber comando, não ser o principal e principalmente não possuir Sara. Ele a amava e afirmava que ela o tinha escolhido, tinha percebido em seus olhares a afirmação e a aceitação de seu amor. Mas quando viu que Hiago fora escolhido para o comando, negara-lhe as investidas. Sara sempre quis ser a mulher do primeiro do grupo e mesmo sabendo que sua irmã Sula o amava não se importava, ela era uma boba mesmo, Sara queria o primeiro fosse quem fosse.
Sara sabia dos seus dotes e não seria difícil conquistar Hiago. Ela gostava de Herrera, mas o poder falava mais alto, queria ser a primeira entre as mulheres. Sabia de sua beleza e de seu dom de seduzir.
Herrera foi criado praticamente só. Sua mãe fugira com um gadjós. Tivera ele ainda bem moça e não tinha carinho pelo filho. Herrera cresceu ouvindo a história da fuga da mãe. Sua mãe era uma cigana bela e ele herdara sua beleza. Forte, alto, seus cabelos pretos e lisos davam uma leveza ao seu rosto moreno e másculo. Criado livre formou-se um homem rebelde, dono de seus movimentos e de suas decisões. Tornou-se frio, ambicioso, traiçoeiro e invejoso. Bastante agressivo, volta e meia se metia em confusão e vivia se arriscando no meio dos gadjós, em suas passagens pelas províncias. Conquistador barato não respeitava as mulheres e muitas vezes as conseguia na base da força. Mesmo assim, seu coração batia por Sara e ele tinha o apoio da velha.
Um dia foi pego num pequeno furto e para não ser preso, delatou a localização do acampamento cigano. Prometeram-lhe ouro e comando, mas teria que acompanhar a retirada dos exilados. Iriam ser levados para a nova colônia Portuguesa. Lá lhe disseram: - O que não falta é ouro e que ele seria o chefe de todos os que para lá fossem em degredo.
Não havia só companheiros de seu clã, vários outros acampamentos foram invadidos e a embarcação iria lotada. Era preciso muita mão de obra, pois as riquezas da nova terra eram incontáveis, lhe afirmaram que estavam tendo dificuldades com os índios. Portanto as promessas eram boas e ele não deveria perder essa oportunidade. Era isso ou a prisão. Herrera não pensou duas vezes.
Hiago não sabia quanto tempo levaram naquele navio. Muitos não resistiram e eram atirados ao mar. O trabalho era duro e escravo. O mau cheiro era forte e o alimento pouco.
Portugal não tolerava os ciganos e incentivado pela igreja católica que os abominava pelos seus costumes, os perseguia e os exilava para as colônias, principalmente para o Brasil. Mas não eram só ciganos.
Os vagabundos, ladrões traidores, enfim a pena era o degredo para o Brasil.
Quando chegavam ao Brasil, eram largados à própria sorte, onde muitas vezes se submetiam aos trabalhos mais perigosos de exploração territorial e serviços de entrega de correspondência, pois tinham facilidades desbravadoras e adaptativas. Mas, quase sempre conseguiam se organizar e manter suas tradições.
O destino do grupo de Hiago foi a Bahia e logo que ali chegou foi registrado e liberado.  Era uma terra estranha e Hiago mesmo revoltado guardou prudência. Herrera dissimulou, dizendo que também fora enganado sendo essa à única maneira de salvar o grupo. Com custo conseguiu juntar o grupo e foi procurar um lugar para levantar acampamento. Não era fácil, era um lugar totalmente desconhecido para ele e logo percebeu os olhares desconfiados e a já conhecida rejeição. De qualquer forma, o jeito era procurar se adaptar o melhor possível.
Entraram para o interior e montaram um acampamento com o que lhe restaram. Não era difícil para eles, já que eram acostumados com as mudanças de ambiente e nunca ficavam parados permanentemente em algum lugar. Era um povo perseguido, sofriam os diversos tipos de preconceitos, seja no modo de vida, seja nas crenças que adotavam, seja na maneira que se vestiam. Estavam sempre às voltas com reações de repulsas, xingamentos e humilhações. Era um povo forte, mas a diversidade de opiniões e a intolerância desgastavam-nos, mas faziam com que cada vez se unissem mais.
Estavam muito fracos e precisavam se recuperar. Conheciam a arte da natureza, mas a velha, a sábia, a orientadora, não estava mais com eles. Tinha sofrido uma síncope com a invasão e morrido. Sara também conhecia os mistérios invisíveis, aprendera com a avó. Conhecia as ervas e seus poderes curativos e restauradores. Ainda não estava capacitada, mas teria que ajudar seu povo com o que podia. Escolheu algumas mulheres e foi explorar a região. Já sua irmã era diferente, embora criada da mesma forma pela avó, não correspondia às expectativas dela. Não era extravagante, não gostava das magias voltadas para desajustes e para o que não fosse bom. A velha logo desanimou de Sula e dedicou todo o seu tempo a ensinar Sara para que a substituísse em sua ausência.  
Sara e Sula foram criadas pela avó, após a morte dos pais numa viajem.
A velha tinha o poder da magia, o dom da premunição e a arte das ervas. Possuía a autoridade para o bem e o mal, o domínio da vida e da morte. Era ela quem trazia ao nascimento, que curava os doentes e quem autorizava as mortes. Nada passava ao crivo da velha e Sara já se sentia a substituta da avó. A velha incentivava Sara a usar a sedução e apoiava o gosto dela pelo poder. Sula era discreta e trazia a vontade de ser feliz, de se dedicar ao seu homem. Ela amava Hiago e sabia que era correspondida.
Sula era delicada, sua beleza brilhava ainda mais por causa de sua bondade. Era solícita, amável e bondosa. Amava Hiago desde a infância.
Sara também era bonita. Seus cabelos eram castanhos e seus olhos de mel. Abusava dos adornos e suas roupas eram sempre extravagantes e decotadas. Quando dançava, mostrava toda a sua sedução, rodopiando e deixando as pernas aparecerem. A luz da fogueira iluminava seu rosto mostrando o suor a deslizar no decote.
Hiago amava Sula, mas se encantava com Sara, suas formas definidas, seu corpo moreno. Ele se confundia entre o desejo animal que Sara despertava nele e o carinho angelical que Sula lhe anunciava.
Apesar de Hiago ser o primeiro no comando, a situação fez com que houvesse uma discórdia, uma desorientação no grupo e Herrera se aproveitou da fragilidade de Hiago para arquitetar o conflito.
Horton era amigo e braço direito de Hiago, fora criado junto e aprendera a gostar do amigo, nunca quis disputar nada com ele e respeitava o seu lugar, mas estava um tanto enfraquecido. A ausência do amigo na hora da invasão e a sua incapacidade de defesa o deixou desequilibrado e inseguro. Amava Sara com paixão, mas não ousava disputá-la com nenhum dos dois. Sabia que Herrera o mataria e quando percebeu a intenção dela com o amigo, tentou alertá-lo, mas sabia da forte atração que Hiago sofria com os atrativos sedutores de Sara, ele mesmo caíra neles. E seu desejo, volta e meia, o traia fazendo-o, por vezes, esquecer a fidelidade que tinha com o amigo. Sara sabia disso e o provocava e era com muita dificuldade que Horton conseguia manter o equilíbrio.
Passaram-se alguns dias da chegada do grupo, mas eles ainda não conseguiram a estrutura necessária para se organizar.
Herrera logo percebeu a fragilidade que se instalou entre os amigos e desse modo instigou os ânimos, gerando assim um conflito de poder no grupo.
Herrera se aproveitou dessa insegurança e passou a convocar os homens para uma nova escolha de liderança. Era preciso reorganizar o clã e ele não queria ficar de fora, essa era uma ótima oportunidade, já que Hiago estava desacreditado.
Assim que embarcou no navio, Herrera percebeu as reais intenções daqueles que prometeram uma oportunidade em troca da traição do seu povo. Era claro para ele que tudo foi organizado para que todos eles fossem banidos das terras Lusitanas. Mas, não se importava o que queria era o comando e reconquistar Sara. E essa era a sua oportunidade de fato.
Discursava que teria a ajuda de alguns gadjós que lhe prometeram dar chance na exploração das pedras valiosas que ali havia em abundância. Ficariam ricos e independentes, dizia.
- Veja bem meu povo, eles também têm interesse, são exploradores e também pertencem à escória, como nós. Repetia.
- É a nossa chance! E eu posso mudar o nosso futuro, gritava.
- Hiago não tem mais força, foi derrotado e agora é importante que se tenha uma liderança forte, competente e digna do nosso clã! E todos ouviam com interesse.
Os homens a quem Herrera se referia eram “peso morto” para Portugal e numa estratégia de “enxugar” a população, incentivavam com promessas de riquezas os grupos tidos como arruaceiros, mendigos, desempregados, enfim a escória.
Os nobres que aqui se propunham vir, ganhavam terras, as chamadas sesmarias para começarem suas explorações. Tinham incentivos e ajudas, mas os outros, eram abandonados à própria sorte.
Muitos que aqui vinham, enriqueciam com a corrida do ouro e com a exploração do pau Brasil e retornavam à pátria. Outros por aqui permaneciam, ajudando a aumentar a população com a mistura das raças. Assim, via-se nascerem crianças originadas de portugueses com índias e com negras, formando as populações mais mestiças do Planeta.
Os mistérios, as magias e o poder de persuasão dos ciganos logo os colocaram numa posição tolerável, pois principalmente as mulheres, conseguiam fazer com que suas adivinhações caíssem no interesse daqueles que, sem rumo, buscavam uma luz para o futuro. Eram através das cartas e, principalmente, da quiromancia que muitas vezes o sustento era garantido para todos no grupo. Apresentavam suas danças que atraía muita curiosidade.
Sara era boa nisso e estava sempre às voltas com suas magias, danças e seduções. Apresentavam-se a pequenos grupos de exploradores, desbravadores e nas pequenas províncias.
Mercedes e Hulio, mãe e irmão de Hiago também estavam no grupo capturado e exilado, mas Hiago só os avistou quando chegaram. Sentiu um alívio ao vê-los.
Mercedes era uma mulher bonita. Seu coração era doce e não se entrosava muito nos costumes pesados de seu povo. Não tinha sangue cigano porquanto fora agregada ainda bebê pelo grupo, sua mãe havia morrido numa epidemia que matara muitas pessoas em Portugal e, órfã, fora dada a uma cigana que perambulava pelos arredores. Não poderiam criá-la, muitos estavam doentes e ela acabaria morrendo também.
Cresceu no meio desse povo, aprendeu suas manias e costumes, mas não se sentia incluída nos momentos de magia, brigas e disputas. Casara com o filho do mais importante do grupo e tivera Hiago e Hulio.
Acostumara-se a aquele povo e amava-os. Não sabe por que o destino lhe reservou aquela gente, mas sabia que seu modo de ver as coisas ajudara para que seus filhos se humanizassem, criando corações bondosos e valentes. Mas, foi por muito sacrifício que se dera a adaptação de Mercedes ao grupo, principalmente quando Hélio, o mais forte e o líder do grupo, se apaixonou por ela.
A velha queria que sua filha fosse a escolhida por ele e fizera tudo para que isso acontecesse. Mas Hélio só tinha olhos para Mercedes e a escolheu. Assim sua filha se unira ao braço direito de Hélio e tiveram Sara e Sula. A velha não aceitara o destino da filha e se propunha a modificar o da neta. Mercedes acompanhara a criação das outras crianças e percebia que nem sempre elas eram conduzidas às escolhas baseadas na razão, na justiça e na sabedoria do amor.
A disputa, a ambição e a dissimulação eram uma regra e a magia nem sempre usada para o bem geral. Muitas vezes ela era motivação de pretensões sórdidas. Mesmo vendo tudo isso, Mercedes era apaixonada pelas cores, pelas danças, pela magia milenar das ervas, os cânticos e a união daquele clã.
A velha, cigana mais idosa do grupo, possuía o conhecimento milenar. Era ela quem fazia os partos e também a que provocava os abortos com suas ervas. Em sua maioria as velhas eram bondosas e sábias, mas às vezes o destino dava a algumas pouco qualificadas moralmente essa categoria respeitável e responsável pelas tradições do grupo. Nesse caso, infelizmente, a sábia velha não conduzia sua sabedoria para o bem e estimulava o veneno entre o povo, principalmente entre as moças que se formavam a seguirem as tradições do clã. Muitas desgraças aconteceram por estímulo e conselhos da velha, que trazia com ela espíritos rancorosos e vingativos, amantes traiçoeiros e ambiciosos. Ela protegia Herrera e estimulava-o ao poder.
Grande luta se travava com o primeiro dos homens e a velha, pois o companheiro de Mercedes, amando-a tivera a desaprovação da velha que o queria para sua filha. Mercedes nunca foi bem vista pela velha, que mantinha um preconceito rígido a respeito dos “que vinham de fora,” como afirmava.
Sara era neta da velha e esta queria sua união com Herrera. Sara amava-o, mas, ambiciosa que era, preferiu os braços de Hiago que em seu talento e generosidade conquistara a liderança provocando o ódio de Herrera e da velha.
O destino os trouxe das terras Lusitanas para sua colônia mais nova. Aqui eles iriam enfrentar as consequências de escolhas, paixões e atos impensados. A velha não veio, findou mais uma etapa em sua oportunidade, mas seu espírito trevoso, mesmo não sendo visto acompanhou o grupo na viajem e na nova terra.
Há um ano que eles estavam acampados e sobrevivendo à custa de muita luta. O grupo sofria da falta de liderança, pois ainda se disputava essa honra. Herrera passava a maior parte do tempo explorando as minas. Aliara-se a um grupo de portugueses degredados que buscavam a riqueza do solo em disputas sangrentas.
Sara não era a mais velha do grupo, portanto não podia substituir sua avó na função, embora ela lhe tivesse ensinado quase tudo e seus dons espirituais serem aflorados. A função de conselheira ficou com Mercedes que adotara uma maneira doce, amorosa e digna para orientar quem a procurasse. Mesmo não sendo parte consanguínea do grupo, era dotada de uma forte sensibilidade intuitiva e aprendera muitas coisas a respeito das ervas, das cartas e da quiromancia. Não era de todo estranha ao grupo, pois que sua mãe de criação era irmã da velha, sendo também dotada de conhecimentos ancestrais e protegida pelos espíritos.
Havia uma divisão no grupo que não se limitava aos líderes da força, mas também à liderança espiritual. Sara disputava o lugar que julgava ser seu na ausência da avó. Mas a tradição a impedia. Portanto, assumia paralelamente e rebeldemente esse papel juntamente com os mais revoltosos. E assim o grupo se tornara dois, acirrando todo o destino dos que ali se encontravam.
Hiago, enfraquecido, não mais comandava o grupo e por sua vez perdera a amizade e a confiança de Horton que se aliou a Herrera acompanhando-o nas explorações das minas. Sentia um desânimo que o impedia de se aventurar nas matas à procura de riquezas. Estava cada dia mais só. Sula tentava a todo custo trazê-lo à realidade reanimando-o a buscar seu lugar no grupo.
Hiago se sentia desmotivado. Sara não mais o assediava, o amigo fiel o abandonara. A única coisa que ainda conseguia fazer era a captura de cavalos selvagens, cuja habilidade em domá-los não perdia para ninguém. E era com a venda destes animais que conseguia algo a lhe garantir a dignidade perante o grupo.
Mercedes o aconselhava e o estimulava e Hulio sempre estava ao seu lado, mas não adiantava, era orgulhoso e não aceitava o fracasso.
Herrera cada vez mais crescia no grupo e ao final de dois anos, finalmente, conseguiu a tão esperada posição e mais do que isso, a união com Sara. Horton ficou como o seu braço direito. Mas nem todos concordaram e o grupo se dividiu definitivamente.
Naquele tempo o grupo já contava com oitenta e cinco membros, pois alguns que pertenciam a outros grupos também banidos se juntaram a eles que eram em maior número.
Herrera partiu com os membros que o apoiavam, deixando para trás aqueles que não o respeitavam como líder.
Na divisão, Hiago conquistou uma liderança, mas o grupo era bem pequeno. Sara, mulher de Herrera, tomara a posição de conselheira, ninguém contestava, pois Herrera trazia a ferro forte seu comando.
Seu grupo era mantido em posição privilegiada, sob o comando de um líder que tudo fazia para manter-se poderoso e rico. Herrera conquistou muitas pedras preciosas e, juntamente com os comparsas portugueses, traficavam e enriqueciam. Acumulara riqueza e poder.
Hiago mantinha o seu comando na simplicidade e seu grupo era pobre. Unira-se a Sula e viviam com dificuldades. Aos poucos foi perdendo membros para Herrera que fazia questão de exibir seu poder.
O crescimento daquele grupo cigano comandado por um cigano envolvido no luxo não agradava aos Portugueses que ali estavam justamente para enriquecerem. Não suportavam ter que negociar com ele. Arrogante, autoritário e rebelde.
O tráfico das pedras preciosas era um negócio que envolvia muita riqueza e disputas sangrentas. Herrera era esperto e com a ajuda de Horton sempre estava à frente nas negociatas e conseguia se esgueirar dos perigos. 
Moraes era um português que viera para  a colônia  à procura de riquezas. Falido em Portugal, conseguira através da família da esposa um apadrinhamento para a exploração do ouro na nova colônia de Portugal. Ganhou umas terras para que se estabelecesse e pudesse ajudar a desenvolvê-la  e em troca poderia explorar e comercializar suas pedras. A corte queria que essa nova colônia se desenvolvesse, era promissora e muito rica.
Moraes logo se corrompeu em interesses mais imediatos e, vez por outra, estava as voltas nas negociatas de Herrera. Não suportava estar em posição inferior na conquista do ouro e resolveu tirar Herrera do seu caminho.
Herrera estava realizado, mas não satisfeito. Tinha conquistado Sara e Horton agora estava do seu lado e seu acampamento era o maior de toda a redondeza. Mas não se sentia feliz. Desinteressava-se por Sara a cada dia e a liderança pelo grupo não mais o atraía.
Sabia que Hiago agora comandava o pequeno grupo que se manteve fiel a ele na divisão. Era um grupo empobrecido, mas sabia que reinava a paz, o respeito e a alegria sob seu comando. Mercedes conseguia aconselhar com inteligência e equilíbrio e apesar da escassez material, eram felizes. Sempre faziam festas, as mulheres estavam sempre alegres e cada vez mais crianças nasciam. Herrera invejava Hiago pela maestria com que comandava o grupo dele.
Henrrera sabia que o seu grupo o obedecia, mas não o respeitava. Sara não era boa conselheira e alimentava a discórdia, a bagunça e os abortos. Por isso, não estava contente com o rumo que seu povo tomava. Precisava dar um jeito nisso. Ele nem desconfiava que Sara era conduzida diretamente pelo espírito da velha que ligada a ela não perdia a oportunidade de lhe influenciar.
Herrera através de um informante soube da intenção de Moraes. Há tempos percebera a insatisfação do português para com o progresso de seus negócios e pedira Horton vigiar os passos dele. Soube que armava alguma tocaia para ele. Aproveitou a oportunidade para tirar definitivamente Hiago do caminho. Assim uniria o seu povo novamente.
Mas o que Herrera não desconfiava era que Horton estava ao seu lado não por dedicação e respeito, mas por ambição e ódio. Horton foi percebendo que Herrera só o mantinha a seu lado como braço direito pela vaidade de tirá-lo de Hiago, percebera logo que ele não tinha intenção de beneficiá-lo, então, foi nutrindo uma raiva cada vez maior por Herrera.   
Horton amava Sara e às escondidas, encontrava-se com ela. Ela gostava de Herrera, mas sentia cada vez mais a distância dele. Desconfiava que Herrera estava interessado em Sula. Sabia que ela na divisão dos grupos ficara fiel a Hiago, pois o amava. Herrera tomou cisma e não queria só dominar o grupo de Hiago, mas conquistar Sula.
Sara não era ingênua e notara que suas estratégias de sedução não mas interessavam a Herrera. Decidiu se aliar a Horton. Estava atenta para todas as conquistas de Herrera e com a ajuda de Horton descobriu o esconderijo das pedras preciosas que Herrera conseguira. Num plano, Sara e Horton se juntaram para eliminar Herrera.
Por sua vez, Herrera já estava com o plano armado contra Hiago.
Mercedes naquela manhã acordou um tanto agitada, não tivera bons sonhos. Pediu para que Hiago guardasse recolhimento, não era um bom dia para negociar. Hiago ficou desconfiado, pois sua mãe não era dada a premonições e nem costumava se manifestar sem ser consultada. Era uma conselheira bastante cautelosa e respeitava a vontade de cada um. Mas, tinha um negócio muito importante a resolver e de uns tempos para cá seu grupo sofria muitas perseguições, tendo que, por vezes, trocar de lugar, armando acampamento cada vez mais distante dos centros de comércio.
As mulheres tinham dificuldades em conseguir algum trabalho e eram constantemente enxotadas pelos chamados guardiões da ordem, que na verdade, eram degredados também que aceitavam esse trabalho em troca de oportunidades de reconhecimentos. Hiago tinha combinado ir com Hulio nessa negociata. Na verdade o que Hiago não sabia era que quem ia comprar seus cavalos era Moraes.
Herrera, sabendo disso, armara para que Moraes fosse assassinado e Hiago levasse a culpa. Livraria-se de dois pesos e poderia reconquistar o grupo de Hiago e trazer Sula junto unindo novamente o clã.
Horton, ciente dos planos de Herrera, avisa a Sara que avisa a Moraes das intenções de Herrera. Horton pensava que Sara ia ficar com ele e que o comando do grupo de Herrera seria dele. Mas as intenções de Sara eram outras. Se livrar de Herrera e de Horton e reconquistar Hiago, tirando-o de Sula. Assim poderia definitivamente ser a mais poderosa de todo o clã.
Mercedes chama mais uma vez o filho e tenta fazê-lo desistir de deixar o acampamento naquele dia, mas Hiago não aceita, pois se perdesse a venda dos cavalos não teria como suprir o grupo naquele mês. Sai e leva o irmão.
Herrera combinou com Horton a tocaia. Sara avisa Moraes.
Mercedes se recolhe assim que os filhos saem e promove um ritual de preces. Juntamente com algumas mulheres entoa uma cantiga de súplica. Pede aos Santos proteção para Hiago e Hulio.
No caminho, Herrera ataca Moraes que, prevenido, contra ataca ferindo Herrera que corre com seu cavalo mato adentro. Horton, numa tocaia, avança para Herrera atingindo-o brutalmente com o punhal. Herrera cai desfalecido e Horton foge. Neste momento se aproxima Hiago que ainda tem tempo de presenciar o acontecido. Hulio não viu, pois estava no final da tropa conduzindo alguns cavalos. Horton encontra Moraes e Sara. Hiago recolhe Herrera que ainda apresentava sinais de vida. Coloca-o no cavalo e vai ter com Hulio pedindo para que ele o leve até o acampamento deles, pois era o mais próximo. Hiago segue sem saber que Moraes o aguarda numa segunda tocaia.
Horton, sem que Sara soubesse, combinara com Moraes a morte de Hiago.
Mercedes sente uma pontada no peito no instante em que Hulio chega com Herrera no cavalo. Pensa ser Hiago, mas vendo Herrera se apavora mais ainda. Os homens da aldeia pegam Herrera e levam-no para a tenda de Mercedes que começa rapidamente a medicá-lo.
Herrera sangrava muito e sua vida estava por um fio. Enquanto cuidava de Herrera, Hiago caia na armadilha de Moraes e Horton. Hiago não teve a mesma sorte de Herrera e cai morto diante de Sara, que, perplexa, assiste à cena em desespero.
Sara percebe neste instante que Horton tramara tudo. Estava contaminado na ambição e na vingança. Horton a pega pelo braço a coloca no cavalo e parte em direção ao acampamento. Queria mais que depressa assumir o tão esperado comando. Sara se debate, mas leva uma bofetada de Horton.
Horton se despede de Moraes prometendo-lhe colaboração e parte das pedras de Herrera.
Hulio deixa Herrera e sai à procura de Hiago. Encontra-o morto. Grita de pavor. Recolhe o irmão e retorna para o acampamento.
Nunca se viu tanta tristeza nos olhos dos irmãos ciganos enfileirados lado a lado como num corredor de corpos para a passagem de Hulio com seu irmão morto pendurado no cavalo. Mercedes sai da tenda e num grito desmaia. O líder do clã, querido por todos já não existia mais. Sula se desespera e sai correndo de encontro ao seu amor e chorando se debruça sobre ele. Todos começam a cantar. Neste momento, Herrera sai, pega um cavalo e corre, mesmo bastante ferido volta para sua aldeia. Tem que se vingar da traição. Chega na aldeia em tempo de ver Horton e Sara se beijando.
Quando chegou na aldeia com Sara, Horton é recebido por alguns do grupo, perguntam por Herrera, no que Horton dissimula dizendo que tinham caído em uma tocaia e que achava que Herrera estava morto. Sara quer falar, mas Horton a segura e a beija. Todos olham aturdidos. Nesse momento Herrera entra gritando, ataca Sara numa punhalada, sobe no cavalo e some na mata.
- Maldita! Ela e o traidor do Horton armaram tudo contra mim, mas não permitirei que fiquem com minhas pedras. Esbravejava Herrera. Ainda volto para matar esse desgraçado!
Corre para o esconderijo das pedras, mas sangrando muito, cai do cavalo batendo com a cabeça e morre.
Horton não teve tempo de reagir, não conseguiu impedir a punhalada de Herrera contra Sara. Ele foi certeiro apunhalando ela direto no coração. Sara morreu na hora. Correu para o cavalo e foi atrás de Herrera e ainda teve tempo de vê-lo cair do cavalo e morrer. Sem Herrera, Sara e Hiago, seu plano estava em segredo. Voltou para a aldeia e deu a “triste” notícia ao grupo.
- Mais uma vez estavam entregues à própria sorte, dizia. Nosso líder foi vítima de uma armadilha e está morto. Repetia fingindo revolta e dor.
E juntando alguns homens voltou ao local para buscar o corpo do chefe para que fosse homenageado à altura.
No acampamento de Hiago a revolta é grande. Mercedes recobra os sentidos e vai ao encontro de Sula. Todos estão tristes. Num único coro, cantam e velam pelo corpo do líder querido do grupo.
Hulio, não sabendo da armadilha de Horton e da verdade do acontecido, espera alguns dias e vai a procura dele. Soube da morte de Sara e de Herrera e seguindo o conselho da mãe, procura Horton para a tentativa de unir novamente o clã.
Horton dissimulando bondade e já articulando a sua liderança, aceita se juntar novamente ao grupo deixado por Hiago e ardilosamente consegue a liderança de todo o clã.
Mercedes continuou no papel de conselheira, mas, entristecida pela morte do filho querido, cada vez mais se mantinha recolhida. Horton com paciência e delicadeza conquista Sula que, achando que ele fosse bom e que conduzia o grupo com sabedoria, aceita se unir a ele. Hulio torna-se seu braço direito ajudando-o a enriquecer cada vez mais com a exploração de pedras preciosas.
E assim, Horton liderou o novo grupo num grande clã por vinte anos sem que ninguém nunca desconfiasse de sua verdadeira intenção. Por esse período muitos nasceram, morreram, migraram por outras terras sempre levando as músicas, as danças, o carisma e a magia do povo cigano, colorindo o País e divertindo almas em exibições circenses, teatrais, num suor artístico e alegre originário do povo cigano.
Nossos personagens conduziram seus destinos através das paixões que cada um conservava nos inconscientes desejos contidos em séculos de vivências. Sejam nas conquistas, nas perdas, nos desejos obscuros.
O espírito da velha que influenciava sua neta num equivocado impulso amoroso, ao se deparar com o destino dela, entra num estado de torpor desmaiando a seguir. E nessa oportunidade os mensageiros do bem que, prevenidos dos desfechos, a recolhem e a levam para tratamento. Esse resgate só foi possível por causa dos antecedentes milenares que a velha possuía em seu favor, quando em reencarnação remota fora tida como bruxa e queimada viva. Tivera concessão pelos inúmeros bens que fizera com a manipulação da natureza que ajudou a salvar muitas almas aflitas e mesmo agindo equivocadamente na atual oportunidade reencarnacionista junto aos ciganos, os conduzindo por caminhos errados, foi considerado o livre arbítrio de cada um.    
Herrera, ao despertar no mundo invisível, corre para junto de suas pedras e lá permanece afugentando todos que por ali se aproximavam. Não viu quando Horton as pegou e em sua mente elas ainda estavam lá. Como desfaleceu pela hemorragia morrendo a seguir, só despertou após a ida de Horton. Permaneceria lá por um período até que a providência Divina lhe permitisse nova chance de resgate.
Hiago foi recolhido por espíritos afins que o levaram para tratamento, permaneceria num sono por algum tempo, até que pudesse tomar ciência dos acontecimentos e, com a ajuda dos irmãos, ajustar o seu retorno para os resgates necessários.
Sara despertou numa grande revolta, vagou dias no acampamento esmurrando, esbravejando e perseguindo Horton. Ficaria assim até que houvesse a necessidade de prosseguir numa nova etapa.
Nosso Pai querido pacientemente aguarda que seus filhos possam usufruir o presente que é o livre arbítrio em favor próprio, elevando-se moralmente por escolhas próprias.  
Horton desencarnou enlouquecido pela ganância, viveu para acumular ouro e pedras preciosas. Não manifestou intimamente nenhum remorso, pois achava firmemente que conquistara o que lhe era de direito. Teve dois filhos com Sula, mas sabia que ela guardava em seu íntimo o amor perdido por Hiago. Invejava-o mesmo após sua morte. Sabia que a liderança estava na essência do comando respeitado, não temido ou simplesmente tolerada.
O povo respeitava Hiago, mesmo após a sua partida. Temiam Herrera pela sua rudeza e falta de tato e dele nada lembravam já com Horton apenas toleravam-no, pois não havia na aldeia ninguém para substituí-lo.
Ao penetrar o mundo invisível, se deparou com Sara à sua espera. Travaram batalhas de ódios pois eram espíritos presos à matéria numa sede de vingança. Ainda teriam algum tempo até que o resgate e a nova oportunidade surgissem para novos reencontros e novos ajustes.


Capítulo II

Brasil, meados do século XVIII.
Fazenda Rancho Alto em Campos dos Goitacazes.

Coronel Mário era dono de muitas terras e próspero produtor de açúcar e cachaça. Sua plantação de cana era das mais prósperas e sua fazenda umas das mais ricas da região. Trazia seus escravos a mão de ferro.
Era casado com Mariquinha, moça de família nobre. Conhecera um pouco antes de casar. Suas famílias já os tinham prometido desde crianças. Ele pouco estudou, seu pai, o Barão o preparara para ser substituto dele na condução dos negócios, já que era filho único. E a exemplo do pai, Coronel Mário não era um bom homem nem um bom marido. Embrutecido com a lida na fazenda, tornara-se rude e ignorante. Seu pai lhe cobrava atitudes de macho e a infidelidade era comum.
O Barão era um português que herdara as terras do pai dele que as ganhou em favores à corte, iniciou com a criação de gado, mas prosperou mesmo com a transformação da fazenda em engenho. Com a exploração da mão de obra escrava e com muita influência, sua produção era sempre a mais valorizada. Mesmo bastante rico em pouco tempo enriquecera ainda mais. Casou-se com uma portuguesa de descendência nobre, juntando as riquezas.
Coronel Mário cresceu neste ambiente, onde explorar, humilhar e cometer crimes era natural. Quando o pai morreu, herdou suas terras e suas maneiras injustas de agir.
Seu capataz era filho de branco com negra, cria da terra. Era revoltado com a condição a ele dada pela vida. Odiava os negros, trazendo à risca as ordens dos patrões e acrescentando seus sentimentos, fazia da vida dos escravos um inferno. Trazia a desconfiança de ser irmão bastardo do coronel, pois era um pouco mais velho que ele. Mas isso nunca foi provado.
Sua mãe morrera no parto e lhe diziam que ela havia se deitado com um visitante da fazenda. Mesmo odiando os negros, perseguia as negrinhas cometendo horrores com elas assim que “amadureciam” como ele mesmo dizia. Era apoiado pelo coronel que constantemente o acompanhava nestas orgias macabras.
E é neste cenário que se desenrola mais uma fase reencarnatória dos nossos personagens.
Manhã quente e Genivaldo corre para avisar ao coronel da chegada de mais um lote de escravos. Ele gostava de escolher pessoalmente, pois era assim que o pai fazia e ele nunca errava. Desta vez ele se surpreendeu com a qualidade da mercadoria, homens altos e fortes, dentes alvos e rostos lisos com feições finas. Foi informado que pertenciam a uma tribo importante da África, dizimada por exploradores e que o príncipe estava entre eles. Lote valioso dizia o traficante, passara ali primeiro pelo prestígio do coronel.
Coronel Mário nem piscou, arrematou todo o lote. Eram cinquenta escravos entre homens, mulheres e crianças.
- Encaminhe para a senzala, providencie que todos tomem banho e alimento e que fiquem três dias sem trabalhar. Amanhã farei o reconhecimento e a determinação para os trabalhos. Disse ao capataz.
- Sim senhor coronel. Respondeu Genivaldo.
Coronel Mário não viu as mulheres, portanto não pode naquele momento se deparar com a razão de toda a transformação de seu destino. Girou nas botas e voltou à casa grande.
Genivaldo não entendia porque o Coronel gostava de escolher seus escravos e determinar suas funções, todos os outros capatazes que faziam isso. Dessa forma sua autoridade junto aos escravos ficava comprometida e ele tinha que ser mais enérgico que precisaria.
Na verdade isso irritava Genivaldo por causa da inveja que tinha do coronel.
- Homem ainda jovem, com tanto prestígio, dizia revoltado. E arrematando afirmava;
- E eu, nascido nesta condição, nunca serei ninguém.
Deus é muito injusto, afirmava ele ao pensar na sua posição.
            Genivaldo esquecia a condição dos seres ali escravizados, pois em sua cabeça eram apenas animais descendentes do macaco, raça inferior que o destino traçou a rota. Em seu íntimo sabia que descendia deles, mas se recusava a raciocinar a respeito, afinal sua pele não era alva, mas também não era negra. Neste sentido, ele gostava de pensar que Deus fez os negros para servir aos brancos e ele não, ele trabalhava com os brancos. Negava a sua raça, assim era traiçoeiro, ambicioso e mau.
Genivaldo encaminhou o grupo para a senzala, não deixou de reparar nas mulheres e percebera algo diferente. Passando os olhos animal por elas avistou uma negrinha, deveria ter uns quinze anos, mas o corpo escultural e as feições finas o chamaram a atenção. Não percebeu o olhar de desespero e revolta do negro que ia logo atrás, preso as correntes. Era Tunga, o príncipe. Líder do grupo capturado e enamorado de Tiára a jovem cobiçada por Genivaldo.
Tunga estava preste a herdar o lugar do pai na tribo, pois ao completar maior idade e passar pelos rituais sagrados, o filho mais velho podia substituir o rei para que esse pudesse descansar até a morte chegar. Era o merecimento para quem cuidou do grupo por longo tempo. Assim Tunga deveria se casar e ter também o seu herdeiro. Tiára já estava prometida a ele. Seu coração batia forte, temia por ela, pelos guerreiros, pelas mulheres e crianças ali num destino incerto. O que faria? Era o responsável pela sua gente. Sua cabeça doía, mas seu coração se enchia de ódio.
Pensava no pai morto na invasão, na mãe deixada para trás ferida e desesperada. Pensava em sua tribo, destruída, pegando fogo. Pensava em seu destino.
Olhava aquele lugar, tão diferente do seu, aquelas pessoas, tão raivosas. Lembrava o quanto lhe foi sofrido quando chegou na tribo e viu aquelas cenas. Não pensou em nada, correu em direção a ela, mas já era tarde. Foi agarrado e imobilizado sem condições de resistência. Uma coisa lhe chamou a atenção, não tocaram em nenhuma mulher, nem lhes tiraram as crianças. Por quê? Se geralmente essa era uma prática adotada em toda conquista?
Escravizavam os homens, usavam as mulheres e separavam as crianças, onde eram trocadas em outras tribos aliadas. Mas desta vez foi diferente.
Não sabe quanto tempo permaneceram naquela embarcação. As mulheres e crianças foram colocadas num compartimento e os homens, vários de outras tribos também foram para os remos.
Quantas vezes remou seu bote nas águas para pescar, correu nas savanas para caçar, mas ali as forças eram no limite, mal descansavam, mal comiam e muitos morriam doentes e enfraquecidos.
De sua tribo quase todos sobreviveram, eles eram fortes, pois os rituais de sobrevivência eram rigorosos para a organização dos guerreiros, por isso eram resistentes e fortes. Seus guerreiros passavam por testes e só aqueles que resistiam faziam parte dos grupos de guerra, de exploração e de defesa.
Eram organizados. Respeitavam os espíritos dos mortos e sempre faziam rituais de adoração e pedidos de proteção. E isso o encabulava.
Onde estavam seus ancestrais que não os protegeram, em que errara para não ser agraciado pela vitória. Por que a tribo fora atacada logo quando estava fora, na caça? Não pode defendê-la, não pode lutar honradamente. Mas, essa era uma tribo diferente, seus costumes eram diferentes, suas terras eram diferentes e seus animais também. Tão pacíficos, não eram selvagens como os de sua terra.
Pensava em Tiára.
Seus destinos estavam traçados ali, mas Tunga não sabia.
Logo de manhã coronel Mário vai a senzala para a tarefa. Ele gostava disso, seus olhos se enchiam de prazer, pois eram mais mão de obra para a sua produção e isso o satisfazia, trariam muito lucro e logo o que gastara com as mercadorias seria recuperado.
Precisava escolher duas mulheres para a casa grande, pois Mariquinha reclamava da negrinha que a ajudava e queria que a substituísse.
Sebastiana também lhe pediu uma ajudante para a cozinha.  A preta, mesmo não sabendo a sua idade, se dizia velha e cansada, aparentava uns sessenta anos. Há muito tempo cozinhava para eles e o pai do coronel, o Barão adorava seus quitutes.
- Era bom mesmo que ela ensinasse a outra negrinha, pois logo poderia morrer e seria um transtorno se adaptarem a um novo tempero. Pensava o coronel. Estava disposto a essas mudanças e assim com a ajuda de Genivaldo, entrou na senzala. Todos já tinham ido para a lida e só permanecia o novo grupo.
Sem nem ter tempo de vislumbrar qualquer um, seus olhos se depararam com Tiára. Seu coração num baque se acelerou e de imediato uma tontura lhe pegou de supetão e quase caiu. Sua mente girou e era como se uma cena lhe passasse pela cabeça. Viu-se envolvido junto aquele corpo numa cena de amor. Quase desmaiou e segurado por Genivaldo sentou num banco que ali se localizava.
- O que houve coronel? Está se sentindo mal?
- Não é nada, já estou melhor. Pode me largar.
- O senhor quase desmaiou, quer voltar pro casarão?
- Não, estou bem. Disse irritado.
Passados alguns minutos, o coronel se levanta e passa a verificar o grupo. Mas não consegue desviar os olhos de Tiára. Pega o papel e logo começa a listar os negros primeiro, depois as negras e depois as crianças.
- Esses vão para a lavoura. Aponta para Tunga e para mais dez, percebendo que eram fortes. Os outros ficam para ajudar com os animais, jardins e outros afazeres. Já temos alguns escravos velhos demais que já não dão conta do recado.
- As mulheres que estão com os filhos poderão ficar na senzala ajudando na organização, alimento e limpeza, até as crianças crescerem mais.
- Aquelas duas ali vão para a casa grande. Aponta para Tiára e outra negrinha.
- Não quero que toque em nenhuma jovem do grupo sem minha ordem. Diz para Genivaldo que irritado concorda com a cabeça olhando para Tiára que já morava em seus desejos animais.
Tunga olha a cena com ódio. Aonde irão levar a sua Tiára. Sua cabeça gira em pensamentos. Não entendia uma palavra do que falavam. Só aprendera no barco as palavras “remem” e “anda”, isso abaixo de chicotadas, pois só podiam parar às ordens daquele que vigiava com o chicote na mão. Ficara muito tempo sem saber o que acontecia com as mulheres e as crianças. Só quando desembarcaram é que pode constatar que ainda viviam.
Todos os homens eram denominados negros assim que chegavam, quando se adaptavam e aprendiam a se comunicar iam se identificando com os nomes que se faziam entender. Algumas mulheres, as mais antigas, possuíam nomes batizados entre eles, principalmente os nascidos na senzala. Acabavam adotando os nomes de origem portuguesa, portanto tinham muitos Manuel, Antonio, José, Maria, Madalena, Fátima e outros. Mas a maioria era tratada como negrinha e negrinho.
Tiára  foi servir a sinhá e logo que chegou à casa grande, foi recebida por Mariana que era uma espécie de faz tudo na casa, uma governanta. Foi morar na fazenda logo que Mariquinha casou. Ela já servia na casa de Mariquinha antes dela se casar e a pedido da mãe de Mariquinha foi ser a governanta do casarão.
- Mariquinha não estava acostumada com a vida na fazenda e sentia muita solidão. Dizia a mãe. E o coronel, seu marido não ficava muito em casa, viajava muito e ela precisava de companhia, completava. Então, Mariana concordou. Melhor mandar do que fazer, pensava ela.
Mariana tratou logo de dar um “trato na negrinha”; como dizia e olhando para Tiára a escolheu para ser a mucama da patroa.
Mariquinha não poderia ficar ao lado de uma negrinha desarrumada e mal cheirosa. Seria uma dificuldade para se fazer entender, mas conseguiria “adestrá-la” e não era a primeira vez que tivera que fazer isso. Deixaria a outra negrinha por conta de Sebastiana, ela que se arrumasse com a ajudante que pediu. Mas, assim que Mariana se deparou com a “negrinha” limpa, arrumada e cheirosa, não gostou do que viu. Sabia o quanto o coronel era mulherengo e certamente essa não lhe escaparia. Mordeu os lábios e como num filme relembrou a sua própria experiência. Não demorou muito desde a sua chegada na fazenda para que ele a fizesse envolver em seus braços. Ela sabia que ele não amava a esposa, que casaram por conveniência e que ela em seu destino não avistava possibilidades de arrumar um casamento como queria.
Gostava do luxo, nem que fosse emprestado. Portanto há muito era amante do coronel Mário, aprendeu a amá-lo. Assim, aceitava a sua condição de mera amante. Não tinha sentimentos ruins para com Mariquinha, pelo contrário, não se sentia traindo a sua confiança, pois sabia que ela não amava o marido. Aceitara o casamento por ser submissa e por não ter escolha. Era o casamento ou o colégio interno em Portugal.
Mariquinha tinha Mariana como amiga, a única naquele lugar distante. Mariana a tratava com carinho. Sofria com a sua vida, mas não reclamava. Aprendera a respeitar o marido e não contestava os seus caprichos, procurava entender o modo rude dele ser, o pouco carinho que lhe dava. Agradecia a Nossa senhora o casamento e por nada lhe faltar. Desejava muito ser mãe, pois esperava que assim o coronel passasse a olhar mais para ela e se transformasse, pois um filho era tudo que ele queria. Mas não engravidava, não sabia por quê.
Nunca deixara de atender aos chamados do senhor seu marido e embora fosse negado a ela qualquer tipo de prazer, esperava esses momentos ansiosamente para que finalmente pudesse ser mãe. Com certeza um filho a traria mais alegria, mais razão para sorrir e viver. Sua mãe sempre lhe dizia que uma criança era a alma do casamento, era o complemento da união, era a continuidade da família. Em suas preces, orava a Jesus para que fosse mãe logo.
Espírito há muito evoluído, Mariquinha aceitara essa missão, a de levar para essa família e principalmente para o coronel Mário um pouco de paz. Fora comprometida em tempos longínquos com a família, mas há muito conseguira o equilíbrio e nos tropeços das vidas vividas, soubera aproveitar ao máximo.
Assim a misericórdia do Pai lhe proporcionara a condição de escolher sua jornada em favor dos irmãos queridos. 
Sebastiana sabia do caso do sinhozinho com dona Marianinha, como a chamava, mas não ousava falar nada, não queria voltar para a senzala de onde saíra há muito tempo. Tinha carinho por ela e em seu peito sentia que a condição dela na verdade não era diferente da sua. Apenas a pele não era igual, mas nada ali pertencia à dona Marianinha e na verdade era apenas empregada como ela. Sentia pena dela, seu coração não sabia por que tinha um sentimento de compaixão, embora ela sempre a tratasse mal, lhe queria bem.
Sebastiana também gostava da Sinhá Mariquinha, ela a achava bondosa e sempre a tratava com carinho, mas seu coração de alguma forma se derretia por Marianinha. Sebastiana sabia que Marianinha se interessava pelas coisas de seu povo, principalmente as místicas, gostava de saber das ervas, dos chás e também de acompanhar Sebastiana nos partos. Isso ajudava a manter o bom sentimento que Sebastiana tinha por ela.
Sebastiana era uma preta vivida e sofrida, seus conhecimentos a ajudaram a conquistar um lugar na casa grande. Não gostava do que via, mas calava. Estava há tempo demais naquela casa para querer entender o que via e ouvia. Aprendera a gostar daquela família e a sinhazinha Mariquinha lhe parecia tão frágil, desprotegida, tinha receio do futuro dela ali, entregue àqueles hábeis seres. Limitava-se ao seu lugar que era a cozinha.
Coronel Mário não via a hora de voltar a ver a negrinha, como ela teria ficado depois de arrumada aos moldes dignos de ser a mucama da senhora? Com certeza Mariana soubera arrumá-la a efeito. Sabia que não a veria com facilidade, pois ela ficaria nos aposentos da senhora na maior parte do tempo, não fazia parte do grupo que cuidava da limpeza e organização da casa, portanto precisaria de uma desculpa para ir ao aposento de Mariquinha.
Sempre que desejava intimidades, avisava Mariana que tomava todas as providências e encaminhava Mariquinha ao seu aposento sempre duas horas após o jantar. Isso acontecia pelo menos duas vezes por mês, pois esperava que Mariquinha engravidasse para lhe dar o filho desejado. Já estava casado há cinco anos e nada.
- Que mulher incompetente! Dizia assim que sabia que ela estava “naqueles dias”.
- O problema não é meu! Repetia. Já que sabia que algumas negrinhas já haviam engravidado dele. Mas providenciava para que todas perdessem os filhos.
 - Filho bastardo e mestiço, era só o que faltava! Esbravejava.
Sebastiana conhecia as ervas e fazia os chás para as negrinhas. Não gostava disso, mas sabia que se nascesse um único filho originário do relacionamento do Sinhô com alguma negrinha, ele mandaria matar, portanto preferia providenciar o chá para que imediatamente após elas se deitarem com ele pudessem evitar a gravidez. Conhecia o poder das ervas e Genivaldo se encarregava de avisar quando era necessário. Sempre que isso acontecia Sebastiana se ajoelhava e pedia perdão ao Pai criador. Não sabia bem por que, mas seu coração doía a cada vez que preparava os chás.
A vida trás oportunidade de rendição nas chances reencarnacionistas. E os destinos se encontram nas adversidades.
Os personagens que se encontram trazem cada um, suas necessidades para o crescimento e se entrelaçam nos caminhos traçados para as provas a ultrapassarem.
Muitas dessas provas vão se tornando expiações, já que nem sempre elas são vistas como essencial ao amadurecimento da alma encarnada, que num futuro, ao tornar-se espírito, poderá romper as amarras da matéria para enfim cruzar a imensidão da luz.
Vamos ver essas almas nesses cenários a sofrerem as consequências das amarguras da não aceitação de suas vidas, pois presas às vaidades, orgulho, inveja, ciúme e raiva, colocam o amor verdadeiro em segundo plano. São espíritos afins em suas necessidades, em suas dívidas e em suas chances. Eles vêm de séculos de vidas a premiá-los com as oportunidades para as suas evoluções, mas endurecidos por interesses mesquinhos de sobrevivência ilusória, se comprometem cada vez mais dificultando a caminhada até a chegada triunfal.
Assim, Sara se compromete cada vez mais na pele de Mariana, não conformada com seu destino almeja o que não lhe pertence, transformando as vidas dos que a atrapalham.
Herrera tem a sua chance numa posição que coloca em prova a sua capacidade de resistir às adversidades, a aceitar seu destino e a servir de mãos caridosas em defesa dos mais desprovidos. Reencarna como Genivaldo e na dificuldade da resistência, fracassa mais uma vez. Continua a não aceitar sua condição, alimentando o orgulho. Não aproveita a oportunidade da redenção junto à humildade.
A vida trouxera riqueza e poder para Horton e envolto na carne do coronel Mário, conservou sua revolta e desamor, fazendo das almas em seu poder animais a explorar  e as mulheres de seu caminho brinquedos a destruir. Nada aproveitara de sua outrora vida. Esquecera os compromissos assumidos na vida espiritual, se fazendo fraco diante das tentações mundanas.
Sula, já consciente no mundo espiritual com suas necessidades e compromissos com as almas afins retorna para ser o elo de concórdia, o espírito redimido a expiar suas atitudes num passado longínquo com essas almas, assim aceitara o resgate de um amor sofrido. Como Tiára caminhará mais rapidamente para a evolução, aceitando seu destino e ajudando a melhorar os que estiverem sob as suas asas.
Hiago viera como Tunga e a condição de príncipe o coloca à prova quando tem que se submeter à condição de escravo. Perde a amada e ainda terá que ser seu protetor aceitando as condições exigidas para a sua prova.
Também podemos acompanhar a “velha” na pele de Sebastiana, trazendo as riquezas do conhecimento milenar, a sensibilidade espiritual e a capacidade curativa. Sebastiana terá que superar o conflito de dar e tirar vidas e em suas mãos a escolha do caminho certo para finalmente alcançar a evolução.
Mercedes reencarna como Mariquinha. Seu espírito evoluído retorna para continuar a sua missão, desta vez amparar e ajudar Tiára com quem se comprometeu na roda da evolução.
Esclarecidas as personagens e suas experiências, voltemos à Fazenda Rancho Alto.
Coronel Mário nunca mais foi o mesmo, desde que colocou os olhos naquela negrinha, nada mais o interessava. A queria de qualquer modo. Era como se em seu peito algo faltasse. Uma chama queimava dentro dele e um sentimento de perda e de vazio lhe dava náuseas e tonturas. Não a tirava de sua cabeça. Mas quantos anos ela teria? Uns quinze talvez. De certo nunca andara com nenhum homem e isso o atormentava cada vez mais.
Tunga não se conformava com a condição imposta a ele, fora criado para ser rei e aquela vida era um castigo. Não esquecia Tiára e por vezes pensou em invadir a casa grande e resgatá-la de lá. Mas a Casa era muito vigiada e a senzala também. Volta e meia ficava preso naquele pau. Sua revolta não lhe permitia nenhum tipo de trégua. E Genivaldo tomou de implicância com ele, pois não lhe dava sossego.
Uma noite Mariana foi até a senzala, uma negra  estava parindo e Sebastiana ia ajudar. Mariana adorava presenciar os partos, até ajudava.
Ao passar pelo tronco viu Tunga que lhe chamou a atenção. Alto, forte, sua pele brilhava e ao olhar para ela sorriu mostrando aqueles dentes alvos num sorriso que a hipnotizou. Sacudiu a cabeça, desviando o olhar. O que era aquilo? Pensou.
E seguiu caminho.
A negrinha já estava aos berros e Sebastiana observou que aquele parto não seria fácil. Providenciara um chá com ervas estimulantes para que as contrações pudessem intensificar e a criança sair mais rápido. Já sabia, provavelmente era outra criança fruto dos abusos dos brancos com as negras.
Nasciam crianças grandes e nervosas, pois as mães as geravam em constante pavor, deixando que a revolta alimentasse os nove meses de espera. Naquela fazenda, não se podiam ter casais escravos, antes das escravas servirem aos prazeres dos brancos e era comum a troca de escravas a serviços das viciações dos senhores. Existia um pacto macabro de depravação.
Sebastiana fez de tudo, mas não conseguiu salvar a mãe. A criança estava com o cordão umbilical enrolado no pescoço e no sofrimento e esforço, fraca e debilitada a negrinha desfaleceu morrendo pela perda de sangue.
A criança, logo se via pela cor era mestiça, provavelmente filho de Genivaldo ou de outro feitor, mas também não resistiu.
Mariana sempre chorava quando isso acontecia e Sebastiana a acalmava dizendo que era o destino que queria. Mariana ficava triste por dias e pensava como a vida é injusta. Mariquinha querendo tanto ter um filho e na senzala nasciam e morriam a toda hora os negrinhos das escravas.
Sebastiana a consolava acalentando suas angústias. Tinha carinho por ela. Mariana aceitava seus carinhos, eram almas afins conflitadas pelas existências e de alguma forma Sebastiana sentia em seu peito esse comprometimento, sentia um frio na barriga, uma agonia que a empurrava para alguma coisa, uma responsabilidade, uma rendição, ela não sabia. Mas, esse se deixar doar era passageiro, Mariana mantinha a pose e não se deixava misturar e logo se afastava de Sebastiana e a colocava em seu “lugar”.
Retornaram em silêncio para a casa grande num misto de tristeza e lágrimas. Avisaram Gerivaldo para que providenciasse os enterros.
No dia seguinte Tunga é retirado do tronco, ficara dois dias lá e precisava de alimento e descanso. Genivaldo como um eficiente capataz e feitor sabia que esse era o tempo máximo para que os prejuízos não fossem grandes, ele sabia reconhecer um “braço forte” como chamavam os que eram resistentes e fortes o bastante para o trabalho nos canaviais. Tunga era um deles, portanto limitava os castigos. Era rebelde, desobediente e desafiador, mas era forte, saudável e resistente e o coronel não tolerava perder um desses.
Tunga logo percebeu o valor que tinha. Não era a toa que era guerreiro e herdeiro do trono, sabia guerrear, conhecia estratégias e sem que Genivaldo percebesse, aos poucos manipulava seus castigos a fim de ficar o máximo de tempo próximo da casa grande assim podia estar mais perto de Tiára. Não desistira dela e iria protegê-la o máximo que pudesse. Percebeu também os olhares de Mariana, via o desejo em seus olhos, conhecia bem, pois na tribo era cortejado e desejado por muitas mulheres. Resolveu corresponder, teria uma aliada.
Dois meses se passaram, Mariquinha tomou de amores por Tiára que correspondeu mimando-a de todo jeito. Mariquinha renasceu, tomou a menina como um ser desprovido de tudo e deu-lhe tudo. Na verdade essa relação que deveria ser de mucama para sinhá tornou-se de filha para mãe tal a afinidade e carinho que aflorou entra as duas. Mariana notou essa simbiose entre elas e até gostou, pois assim percebeu que o coronel teria mais dificuldade em se aproximar da negrinha.
Mariquinha batizou Tiára com o nome de Nara, já que no começo só entendia esse som quando lhe perguntava seu nome. E assim ficou. Não desgrudavam uma da outra e o coronel não se aguentava de raiva, paixão, desejo e ciúmes. Não conseguia se aproximar da negrinha. Ela se tornara a protegida da senhora.
Enquanto isso, ele na ânsia de se satisfazer, tomou de açoite a negrinha ajudante de Sebastiana. Não lhe enchia os olhos, pois que era magra demais e estava sempre com o semblante choroso.
Na primeira noite que a possuiu a negrinha gritava feito doida e teve que esbofeteá-la diversas vezes.
- Era tão miúda que mais parecia uma criança, mas já era moça, pois que já sangrava. Pensava ele numa atitude raivosa e sem remorsos.
Sebastiana não pôde evitar o assédio nem a violência, só pôde consolar e apoiar a negrinha dando-lhe os chás calmantes  e preventivos para que não engravidasse.
Quando iam passando os meses e Sebastiana constatava que ela não pegava filho ficava aliviada, já se apegara à pequena.
As noites em seu pequeno quarto que agora abrigava também a companheira de labuta eram sombrias e algumas vezes angustiantes, quando o coronel a mandava chamar e a negrinha ia com os olhos marejados para mais uma noite de dor e ódio. Sebastiana sempre a consolava e prometia incessantemente a negrinha que logo seu algoz a libertaria, pois encontraria outra para explorar e a negrinha suplicava aos espíritos, àqueles de sua tribo que a protegessem, que a resguardassem e que a ajudassem a se livrar logo daquele animal selvagem, mais selvagem que o elefante, que o leão e que o javali. O bicho homem cruel e sanguinário.
E numa noite fria a negrinha não mais suportou e sucumbiu. Estava grávida e a violência provocou um aborto que a fez sangrar até desfalecer e assim morreu nos braços de Sebastiana que perdeu a ajudante, a companheira e a protegida que de tão frágil era o seu poder e querer que não a protegeu o suficiente.
Sebastiana chorou junto àquele pequeno corpo cujo despojo fora enterrado pelas mãos frias de Genivaldo.
E a vida continuava mais selvagem que na selva, mais cruel que na savana onde os animais caçavam para se alimentarem, diferentemente daqueles homens que caçavam para explorar, matar e alimentar suas vaidades.
Tunga cada vez mais guardava seu desejo de vingança e naquela noite quando não conseguia pegar no sono se deparou com os gritos de uma negra que ele conhecia bem, era da sua tribo, mas agora já não podia protegê-la.
Mais uma que paria e Sebastiana e Mariana lá foram para acudir. Não era segredo para ninguém que Genivaldo usava da negra e aquela criança certamente era dele. O chá de Sebastiana não a preveniu dessa gravidez, afinal os desígnios do Pai é a vida e a vida é imprescindível para o cumprimento da lei evolutiva. A criança nasceu e Tunga e Mariana tiveram o seu primeiro encontro.
Mariana nunca havia se sentindo daquela forma, todos os seus músculos tremiam ao tocar aquele corpo negro, forte e viril, nem ela sabe ao certo como tudo ocorreu, só lembra de ter chegado na senzala e ter esbarrado nele. Desviou seu trajeto automaticamente e num canto isolado da senzala se amaram em toda a expressão de sedução e Mariana se viu abatida por aquele corpo, aquele desejo e aquele ardor que lhe queimava todo o íntimo.
Nunca tivera uma relação tão intensa e a sensação que tivera deixava léguas de distância as que tinha com o coronel. Apaixonou-se loucamente por Tunga e desde aquele dia nunca mais deixou de encontrá-lo. Mas, Mariana não sabia que aquela era uma estratégia de Tunga para conseguir o que queria e aos poucos foi conseguindo a confiança dela que com seu prestígio junto ao coronel conseguiu levar Tunga para o trabalho de condutor de charrete, fazendo com que ele ficasse mais próximo da casa grande.
Um ano se passou Nara agora mais madura, já conseguia entender a língua da sinhá e se comunicava perfeitamente. Estava constantemente junto da “mãezinha” como passou a chamar Mariquinha e assim se sentia protegida. Notara desde que chegara na fazenda o olhar do coronel e se arrepiava toda só de pensar nele perto dela. Sempre saia com Mariquinha, assim encontrava-se sempre com Tunga e quando podiam juravam amor eterno um ao outro.
Mariana, certa manhã, notou a aproximação de Tiára com Tunga e não gostou do que viu.
Genivaldo também já havia notado esses olhares e fez de tudo para que o coronel retornasse com Tunga para o canavial ou para a casa de engenho, onde se moíam as canas, mas o coronel não costumava voltar atrás em suas decisões e estava satisfeito com Tunga ele era forte o bastante para dominar os cavalos, cuidava bem deles e tornara as viagens mais seguras e agradáveis, pois os cavalos nunca mais ficaram nervosos, atendiam ao comando de Tunga como que seduzidos por ele. O coronel estava satisfeito e não queria perder o seu cocheiro. Realmente ele parecia um príncipe ao conduzir a carruagem.
Genivaldo ficava cada vez mais enraivecido e não perdia por esperar a sua vingança. Também tinha ódio de Tunga por descobrir que estava “fornicando”  com Mariana. Ele a desejava, mas foi sumariamente rejeitado por ela e como ele sabia que ela era amante do coronel, não insistia. Mas iria se vingar de todos. Ficou à espreita uma noite e flagrou Mariana nos braços de Tunga e essa foi a sua chance de possuir Mariana.
Ameaçando contar para o coronel, conseguiu que ela se deitasse com ele e sempre que queria, chantagiava Mariana que cedia por medo de perder Tunga e a mordomia da casa. Ela se sentia infeliz, mas concentrava seus pensamentos em Tunga quando se deitava com o coronel e com Genivaldo, assim aguentava afinal eles não a machucavam nem a maltratavam, mas seus desejos pertenciam a Tunga, seu príncipe negro.
Cinco anos se passaram desde a chegada daquele grupo na fazenda Rancho Alto.
Os preparativos estavam intensos na fazenda naquela semana, o coronel resolveu fazer uma festa para comemorar um grande negócio que havia fechado e que lhe rendeu o título de Senhor de engenho, título este que lhe colocava entre os fidalgos e teria como proteção as leis da nobreza e aproveitaria para comemorar também dez anos de casado, assim a movimentação era grande.
Haveria duzentos convidados e pelo menos trinta viriam da província e iriam se hospedar na fazenda. Mariana estava atônita, pois nunca tinha comandado um evento de tamanha grandeza, já que o coronel não era dado a muitas festas.
Os convidados eram todos nobres, ricos comerciantes e, principalmente, coronéis que disputavam com o seu senhor os títulos concebidos aos que se destacavam nos negócios. Era um acontecimento! Movimentaram-se todos da fazenda e do dia anterior até o dia seguinte à festa não haveria trabalho no canavial, nem nos alambiques, nem na produção de açúcar. Todos os escravos estariam envolvidos na festa.
Era a chance de Tunga encontrar com Tiára, pois a movimentação seria grande e ninguém iria desconfiar. O que Tunga não sabia era que o coronel também pensou na possibilidade de ter Nara em seus braços naquela noite e arquitetava seu plano para aquela noite.
Coronel Mário passava dias pensando. Agora ela estava mais madura, menos bicho do mato e era linda, sempre bem vestida, os cabelos bem tratados. Seus lábios eram vermelhos e sua pele era aveludada demonstrando maciez e frescor, sonhava. Ele nunca deixou de desejá-la e no fundo de seu íntimo a amava loucamente. Provavelmente ela estaria com uns vinte anos agora, calculava. E no seu mais íntimo segredo a desejava mais que tudo na vida. Sonhava com seu corpo roliço, macio de mulher moça, desejava possuí-la. Já tinha se tornado uma paranoia e só de pensar em ser dono daquele corpo, daquela alma, delirava de desejo. Ele não aguentava mais, pois por cinco anos escravizou essa vontade dentro de seu peito, agora não era mais o seu senhor, mas seu escravo, escravo daquele desejo.
Noite clara e fresca, a festa estava a todo vapor. Tunga se posicionou por um período junto à entrada da casa grande ajudando nas carruagens e quando todos estavam acomodados após o jantar, dançando e se divertindo, resolveu procurar Tiára.
Genivaldo estava ocupado cuidando do pessoal contratado para assegurar a segurança de todos os convidados. Mariana ocupada na administração da festa. Não podia ter oportunidade melhor.
Tunga ia pegar Tiára e ia fugir de lá com ela.
Deixou um cavalo amarrado na entrada da fazenda. Seu plano era perfeito.
Tiára tinha um carinho enorme pela “mãezinha”, mas sabia que somente assim poderia ficar com Tunga. Amava-o muito e tinha certeza que mais cedo ou mais tarde não iria conseguir fugir do assédio do coronel, pois ultimamente ele não estava nem respeitando o fato dela ser protegida da Sinhá, constantemente a segurava pelo braço fazendo declarações, se dizendo loucamente apaixonado, prometendo coisas, querendo beijá-la. Tinha que ficar constantemente junto da mãezinha para que ele não a perseguisse. Resolveu que ia fugir com Tunga. Ele era guerreiro, sabia caçar, era forte a protegeria. Era um príncipe, o seu príncipe.
Tiára sabia dos encontros de Tunga com Mariana, mas entendeu que era preciso para que ele conseguisse sair do trabalho nos canaviais.
Não tinha dúvidas, ia fugir com ele naquela noite.
Altas horas e alguns convidados já tinham ido embora, mas a grande maioria ainda estava lá. Estas festas costumavam ir até amanhecer e se prolongava pelo dia seguinte.
Tunga e Tiára se encontram nos fundos da casa grande, não viram, mas tiveram uma testemunha.
Sebastiana, numa pausa para descansar vê quando os dois saem juntos em direção à saída da fazenda. Não estranha, já que sempre desconfiou que os dois se gostassem. Ficou pensativa, mas permaneceu em seu lugar admirando o desaparecimento dos dois na noite. Pensou como gostaria de ter tido um amor que a resgatasse daquela vida de escravidão e assim, rogou aos espíritos que guardassem os dois. Entrou novamente e continuou seus afazeres.
Já era manhã alta quando deram pela falta de Tiára e de Tunga.
Mariquinha despertou pela falta de Nara ainda na noite anterior, quando foi ao quarto, já  noite alta e não a viu deitada em sua pequena cama no canto do aposento e nesse momento pensou que ela estivesse ajudando Mariana em alguma coisa. Mas, quando a manhã já se ia de encontro à hora do almoço e não a viu retornar ao quarto, foi saber se alguém a tinha visto. Nisso Genivaldo já tinha dado o alarme da falta de Tunga junto às charretes.
Tunga pegou Tiára e correram para a entrada da fazenda, montaram no cavalo e saíram em disparada. Esses anos de condutor de charrete fizeram com que Tunga conhecesse os caminhos que davam até a vila onde se concentravam o comércio, a igreja e o caminho para fora da cidade.
Tunga já tinha conduzido o coronel até a província várias vezes, quando ele ia fechar negócios ou encontrar-se com os comerciantes, sabia bem o caminho e até já conhecia caminhos estreitos e lugares onde eles poderiam se esconder.
Cavalgaram a noite toda, mas precisavam descansar e alimentar o cavalo. Pararam numa mata fechada perto de um morro que minava uma água formando um riacho. Ficariam ali escondidos até o anoitecer, de onde seria mais fácil retomar a viagem.
Na fazenda o tumulto era geral, O coronel não queria saber mais da festa e não conseguia esconder o sentimento explosivo que o acometia.
Chamou Genivaldo e ordenou que juntasse os melhores homens para saírem à procura daqueles “ingratos” como afirmava aos berros. Gritava com Mariquinha dizendo que ela sabia, acobertava e mimava a negrinha. A festa acabou e com pedidos de desculpas Mariana conseguiu despachar todos os convidados. Ela também estava transtornada.
- Como Tunga pôde fazer aquilo? Como pôde enganá-la, quando a apertando em seus braços afirmava que só ela importava para ele? Mariana estava revoltada, espumava de ódio da “negrinha”, pois era claro que ela tinha fugido com ele.
Genivaldo não via a hora de agarrar aquele “negro safado”. Ele tentou abrir os olhos do patrão, mas não conseguiu. Agora teria que sair estrada a fora atrás daquele negro.
Coronel Mário, agora com o título de senhor de engenho, não se importava com nada, só pensava em Nara, onde ela estaria? Já teria se deitado com aquele negro?
-Tinha posto a sua confiança nele, tirara-o do trabalho duro e era assim que reconhecia? Esbravejava irritado.
- Ele vai ver o que vai lhe acontecer e aquela negrinha não vai escapar, pois irão os dois para o tronco. Rosnava odioso.
Dois dias se passaram e Tunga consegue chegar numa mata densa, pensa que ali estariam protegidos e resolve fazer uma espécie de tenda com paus e folhas de palmeiras e coqueiros para se protegerem. Eram da selva, não tinham medo de nada.
A primeira noite em que dormiram juntos foi uma explosão de amor, amavam-se. Estavam mais maduros e diante das estrelas no frio, no chão, no mato, próximo àquela pequena água que escorria daquele morro entregaram-se um para o outro, sem medo, sem susto. Poderiam morrer agora, nada mais importava.
Coronel Mario era muito poderoso, tinha muito recurso e não desistiu um só instante de encontrá-los. Contratou os melhores homens e pagou o que pediram para encontrá-los.
Ingenuamente, Tunga achando que estavam a salvo naquele lugar, permaneceu com Tiára ali mesmo e na calmaria dos dias, se acomodou.
No décimo dia em que eles tinham fugido, foram flagrados por um dos grupos de busca do coronel e capturados.
Amarrados e açoitados foram conduzidos novamente até a fazenda Morro Alto, só que agora puxados pelas cordas, juntos aos cavalos que vez por outra os derrubavam ferindo-os bastante.
E assim, depois de dois dias de viagem chegaram à fazenda.
Mariquinha, após o choque que levara desde a fuga de Nara, não se conformava. Passava os dias chorando e temendo pelo destino dela. Ficou horrorizada ao constatar o interesse perverso de seu senhor marido por ela. Tinha arrepios só de pensar o que seria dela caso ele a encontrasse, e o rapaz, provavelmente o mataria. Mariana a consolava, mas no fundo seu ódio a fazia desejar que eles fossem encontrados e castigados.
- Era isso que mereciam, falava para Sebastiana que há muito sabia de seu amor por Tunga.
E naquela tarde ensolarada todos presenciam a chegada de Tunga e Tiára puxados pela corda amarrados aos cavalos.
Era uma cena triste e horrível de se ver. Mariquinha corre até a entrada da casa onde os caçadores se postaram para a entrega da “mercadoria”. Ela corre em direção à Nara, mas é impedida pelo senhor que a agarra e a força a entrar novamente na casa. Mariana a acode, mas deseja muito presenciar o desenrolar dos acontecimentos, então fica com a Mariquinha na janela que dava para o pátio. Em seus olhos escorrem lágrima, mas não de pena, mas de raiva. Mariquinha chora verdadeiramente por Nara a quem já tinha sentimentos de amor.
Coronel Mário e Genivaldo descem as escadas e vão ao encontro dos dois. Genivaldo despacha os homens e leva Tunga direto para o tronco, amarrando-o firmemente. Coronel Mário levanta Tiára e pelos braços a arrasta até a senzala. Amarra ela num pau que sustentava uma das madeiras do telhado. Nada diz, retorna para a casa grande e se tranca na biblioteca. Não quer falar com ninguém. Mariquinha e Sebastiana temem por Nara e a realidade vai surgindo na mente de Mariana que parece que acorda de um torpor de ressentimento para um sentimento de compaixão e medo do destino de seu amado.
O silêncio do coronel é o que mais preocupa aquelas almas envolvidas entre si. Num misto de medo, raiva, pena, amor, compaixão.
Mariquinha se recolhe em seu aposento e resolve fazer uma oração em favor de sua protegida, Sebastiana igualmente em seu quarto acende uma vela às almas para que olhem por Tiára e Mariana se pega como nunca fez à única oração que sabe de cor e num Pai Nosso sincero pede por seu amado.
Só quando a noite ia alta mostrando a madrugada que o coronel resolve tomar as providências maquinadas há muito em sua mente. Nessa altura, Tunga já havia sido açoitado até desmaiar e com sede e fraco foi deixado dependurado naquele tronco dos horrores.
Genivaldo recebe as ordens do coronel para que levasse Tiára para a casa que ficava a um quilômetro dali no sentindo oposto à vila. Era uma casa reservada que o coronel usava para as suas orgias com as negrinhas.
Genivaldo conhecia bem e também fazia uso dela. No caminho Genivaldo não se faz de rogado, parou o cavalo, soltou os nós da corda que amarrava as mãos de Tiára que cai exausta no chão e a violenta com todo ódio e rancor. Desconta nela sua revolta e sua ira pelo seu destino, pela sua vida, pela sua inveja. Sabia das pretensões do patrão, portanto queria ser o primeiro a usufruir daquela negrinha cobiçada por ele.
Genivaldo sabia que o coronel estava louco de paixão por ela, mas desta vez, ele seria o primeiro. Mas, quando constatou que ela não era mais pura, a esbofeteou com raiva e sem dó e com crueldade levanta Tiára, a coloca de bruços e a violenta mais uma vez num profundo ato animalesco. Tiára desfalece. Genivaldo cai ao chão em puro desequilíbrio e recobrando a atenção, nervoso a carrega depositando-a violentamente na casa. Pensa que o patrão não irá vê-la naquela noite, pois está pessoalmente ocupado com Tunga.
Logo cedo mandará uma negrinha de sua confiança cuidar de Tiara, assim o coronel não desconfiará do acontecido. Pensa num sorriso sarcástico. Sentia-se vingado.
Mas, Coronel Mário não aguenta esperar mais e vendo Tunga desfalecido monta o seu cavalo, corre em disparada para o encontro com Nara e ainda consegue presenciar a violência do capanga contra ela, a sua amada. Consegue conter a sua fúria e só quando Genivaldo monta o cavalo e pega o rumo da fazenda ele investe contra o feitor numa violência que está acima do que ele pensaria ser capaz. Derruba o capataz esfaqueando-o diversas vezes. Genivaldo agoniza até a morte.
Constatando que o maldito estava morto, corre para a casa e encontra Nara desfalecida no chão em volta de uma poça de sangue.
Coronel Mário pega Nara nos braços e num momento em que deixa seus sentimentos falarem mais alto chora sinceramente aquela cena. Faz de tudo para acudir a mulher que conquistara o seu coração, corre até a casa grande e leva Sebastiana até aquela casa que serviu até agora para violência, desamor e maldades.
Agora abriga aquela alma e se ele pudesse daria a sua para salvá-la. Sebastiana esforça-se ao máximo para manter a vida de Tiára que após três dias de agonia morre.
Durante esses três dias que se passavam, Tunga por sua vez, sofreu os mais bárbaros castigos, pois o coronel o culpava por tudo que acontecia e nem a sua força de guerreiro, nem a sua alteza como príncipe o livrou daquele destino.
Mariana chorou a sua morte. E num canto triste o que restou daquela tribo onde Tunga seria coroado rei, choraram seus guerreiros por sua alma.
Mariquinha se isolou até o fim de sua vida. Nunca mais teria a chance de engravidar e passava os dias a lembrar de sua filha adorada. Mariana continuou como amante do coronel, mas seu coração pertencia a Tunga.
Coronel Mário depois daquele dia e após enterrar pessoalmente a sua amada nunca mais foi o mesmo. Nunca mais tocara em Mariquinha, pois a culpava pela fuga de Nara. Nunca mais tocara em nenhuma negrinha da fazenda. Seu amor por Nara o transformou. Agora era um homem triste e fechado.
Isolou-se totalmente de tudo e de todos. Só saía de casa para resolver raros negócios.
E assim passaram-se trinta anos, onde os personagens em seus compromissos foram seguindo suas estradas.
A fazenda Rancho Alto já não era a mais rica, o título de senhor de engenho já não interessava ao coronel e no decorrer do tempo nossos personagens foram envelhecendo, morrendo e buscando seus ajustes.
Tunga, no mundo espiritual vagou à procura de Tiára que fora resgatada assim que seu coração cessou de bater, pois seus amigos espirituais a aguardavam em silêncio e num sopro de bondade a adormeceram para que pudesse se refazer.
Num pedido de ajuda após dez anos vagando pela fazenda à procura de sua amada, Tunga também foi resgatado para que pudesse, aos poucos, se ajustar ao futuro.
Genivaldo cavou sua rota de desespero no mundo invisível e o esperando uma falange de espíritos vingativos e revoltados o arrastaram para a escravidão da roda obsessiva.
Ainda levaria algum tempo para que tais almas se encontrassem novamente para os resgates necessários.



PARTE III
Capítulo I

Século XX

Aquele casarão seria perfeito. Sara não se continha de satisfação. Lugar ideal, excelente espaço, cômodos grandes e arejados. Só precisaria de alguns retoques, móveis sofisticados e um salão apropriadamente decorado para as bebidas, os jogos e as apresentações artísticas. Não perderia tempo. Autorizou a compra do imóvel ao seu advogado. Aguardaria ansiosamente para cuidar pessoalmente de tudo. Dinheiro não lhe faltava. Entrou no carro e partiu para o hotel.
Quem visse Sara neste momento demoraria a reconhecê-la. Linda, sofisticada, coberta de joias, com motorista e até um segurança. Nada lembrava aquela mulher vulgar e pobre.
Sara levava seu pensamento a Alberto. Chegou a amá-lo, mas não como a Manuel. Seu coração ainda batia forte ao se lembrar dele.
Oito anos se passaram. Não o tinha visto mais, mas seu peito doía só de pensar nele. Nunca tinha perdido um instante sequer de notícias dele. Primeiro procurava se informar com sua amiga dos tempos da Lapa, depois mantinha contato permanente com um detetive que a informava de todos os passos do seu amor. Esperou pacientemente o momento de voltar. Iria reconquistá-lo de qualquer maneira.
Recostou a cabeça no banco do carro, fechou os olhos e com a foto mais recente de Manuel na mão, trouxe para o presente, em sua memória, o último beijo ardente trocado por eles. Era uma despedida, Manuel não mais a procurou. Mas agora chegara o momento e ele seria dela para sempre.
O carro parou em frente ao hotel, ficaria lá até que as obras acabassem então mudaria para o casarão. Seus planos eram claros. Lá seria a sua casa e o local onde triplicaria a sua fortuna.
Alberto a deixara muito bem de vida, a partilha dos bens com a mãe e a irmã dele não a prejudicou. Elas ainda moravam na Europa, não pretendiam retornar ao Brasil.
Resolveram em comum acordo vender as propriedades e dividir os bens.
Sara não queria continuar morando na Bahia e após a morte de Alberto voltou logo para o Rio de Janeiro. O advogado da família se encarregaria de cuidar das vendas.
Estava hospedada no Copacabana Pálace. Para ela hoje isso nada significava, pois já estivera lá antes com Alberto. Mas, nunca imaginaria anos atrás que isso seria possível um dia. Nestes anos de casamento, conheceu a Europa, As Américas e até no Egito foi.
Aprendeu a falar inglês e francês e tudo que uma dama precisa saber. Murila lhe ensinara tudo. Nunca deixara que ninguém desconfiasse dela e logo ganhou a confiança de todos naquela casa. Com a ajuda de Odete, conhecera todos os pormenores sobre Elizabete e pôde “substituí-la” integralmente na casa, na família e no coração de Alberto.
Não se arrepende de nada, pois de qualquer modo fez Alberto feliz e foi o destino quem quis que ele morresse. Nada fez para que isso acontecesse. Foi companheira, amiga, amante e fiel a ele por todos esses anos. Mas agora ela poderia finalmente ser feliz ao lado do seu verdadeiro amor.
Trouxera com ela Odete que além de amiga tornara-se uma espécie de secretária, o motorista Jorge e seu segurança Bil. Eles eram fiéis a ela e precisava de pessoas de confiança para que o seu projeto ficasse em segurança. Com a morte de Alberto Murila resolveu mudar o rumo da sua vida e acompanhou a mãe e a irmã dele para a Europa. Foi melhor assim, pois não gostaria de compartilhar com Murila seus novos planos. Assim que tudo estivesse funcionando iria procurar por Manuel. Sabia que ele estava casado, mas não se importava, queria-o assim mesmo.
Sara sempre esteve informada de tudo, era como se nunca tivesse saído do Rio. Muitas vezes esteve com Alberto aqui a negócios e enquanto ele trabalhava procurava saber de tudo e foi numa dessas vezes que conheceu o Senhor Alberico o detetive particular que ela contratara.
Subiu para o seu quarto, tinha que se arrumar, pois fora convidada a um coquetel numa galeria de arte. Queria comprar umas obras de artes para a decoração do casarão. Ela adorava as pinturas e esses foram os únicos bens, juntamente com as joias que conservara.
Alberto possuía belas e valiosas obras de artes, quadros, esculturas, vasos chineses e louças imperiais. Desfez-se de tudo, menos dos quadros. A arte a conquistara e adorava admirá-los. Mandara que trouxessem todos para o Rio que permaneciam guardados em um depósito de segurança.
Tinha ouvido falar de vários pintores novos. Tarsila do Amaral era uma de quem já tinha visto as obras e adorado. Com certeza ia ter um dela.
Dois meses levou a reforma e a decoração do casarão. Agora ela ia fazer a seleção dos empregados e das meninas. Sua casa seria a mais famosa do Rio de Janeiro, digna de ser frequentada pela mais alta estirpe carioca.
Sara, apesar de ter vivido no luxo e ter convivido com a nata da sociedade baiana, não perdeu a sua essência e a sua tão sonhada casa seria a mais luxuosa casa de prostituição que a cidade do Rio de Janeiro já conheceu.
Assim, a década de 40 ficaria marcada por todas as delícias doentias que a luxúria pode proporcionar aos seres, na casa de madame Sarita, nome adotado por Sara em sua nova conquista.
Para a inauguração, Sara contratara um mestre de festas o qual se encarregou de convidar os mais poderosos homens da época. Não faltou convite para empresários, industriais, grandes latifundiários, políticos e artistas. Até os de São Paulo e Minas Gerais não foram esquecidos.
Foram distribuídos cem convites disputadíssimos, pois seria um acontecimento.
Tudo foi organizado com cuidado e destreza. As meninas foram selecionadas com rigor, levando-se em consideração beleza, cultura, educação e saúde. Tinha gosto para tudo louras, morenas, brancas, negras, orientais e até uma espanhola que dançava com castanholas e tudo. Não faltaram virgens. Todas foram instruídas e treinadas e algumas falavam inglês, francês, espanhol. Deveriam saber se vestir, maquilar, pentear.
Os quartos eram cada um decorado em um estilo e cor e eram todos luxuosos e com todo conforto.
O salão era amplo, dividido em vários ambientes. Um bar, local para os jogos de cartas, o palco para as apresentações, um ambiente para o piano e muitas namoradeiras espalhadas por todo salão.
A iluminação era baixa, disposta em vários abajures e formava uma penumbra graciosa.
O casarão era rodeado por varandas e o jardim era enorme com muito verde e muitos bancos.
Seu casarão era acomodado no bairro de Botafogo e pertencera a um monarca. Era todo protegido por muros gradeados e dispunha de lugar para vários carros. Localizava-se um tanto afastado, assim era discreto em sua localização não ficando exposto durante o dia.
Sara estava radiante, valera cada moeda gasta ali.
Finalmente chegou o dia da grande festa de inauguração. Contratara um cantor famoso da época e ainda teria dança espanhola e uma famosa cantora estrangeira que viria só para aquela apresentação.
Sara estava em alvoroço, mandara que convidassem Manuel, afinal ele era um grande comerciante, era rico e reconhecido na sociedade. Sabia que Toninho também fora convidado, pois ele também era muito rico, não nos modos admiráveis, mas possuía dinheiro e a sua casa era para que os ricos gastassem lá com diversão e prazeres. Ela não tinha procurado por nenhum dos dois.
Ninguém a conhecia como Sara e sim como Sarita. Talvez não a reconhecessem, mas era justamente isso que ela queria, pelo menos no momento.
Arrumou-se no mais luxuoso vestido, abusou das joias ainda estava linda, mesmo nos seus trinta e dois anos. Não tivera fílhos com Alberto, portanto conservava seu corpo.
Sua pele realçada pela maquiagem estava deslumbrante. Fora à praia dias antes e seu corpo conservava o bronzeado que o iluminava. Estava definitivamente bela.
Como previra, a festa foi disputadíssima não paravam de chegar homens de todas as espécies, todos elegantes em suas becas e chapéus. Com certeza não faltaria um.
Não descera logo, esperava o momento ideal. Seu mestre de cerimônia se encarregava de receber a todos e conduzi-los ao salão principal e as meninas se encarregariam de entretê-los.
Naquela noite não haveria práticas, pois era uma noite de festa e inauguração e, principalmente, que não haveria moças para todos.
Toninho foi um dos primeiros a chegar, acostumado com as noitadas, os bordéis e a boemia queria conhecer aquele lugar. Não era o mesmo, mais refinado procurava se misturar à sociedade. Não era aceito, mas tolerado. Seus negócios sujos atendiam a muita gente dita “fina” e ele se impunha. Estava no ramo da bebida, das drogas e dos jogos, também não deixara a prostituição. Explorava todo tipo de vigarice que pudesse existir. Enriquecera, mas era deprimido e triste. Sempre acompanhado por Ferreira, cavava a sua cova de maldição.
Já passava das onze quando Sara desceu, deslumbrante. Foi apresentada a todos e ovacionada por eles. Toninho não conteve o choque já que de pronto reconheceu Sara, mesmo sendo apresentada com o nome de Sarita, nunca se confundiria. Era ela. Foi imediatamente ao seu encontro. Sara o cumprimentou com um leve abaixar de cabeça e Toninho a beijou a mão.
- É um prazer conhecer o famoso empresário Antonio Ferreira. Disse Sara.
- O prazer é todo meu madame Sarita. Toninho não quis dizer naquela hora que se lembrava dela. Guardou segredo, pretendia falar com ela a sós.
- Estou radiante com tanta beleza. A senhora faz jus a todo esse luxo e sofisticação. Elogiou.
- Não me chame de senhora, apenas de madame Sarita. Que bom que gostou será um prazer recebê-lo sempre que puder vir em nosso casarão. Fique à vontade.
- Margarita!!! Venha fazer companhia para o Senhor Antônio, por favor. O senhor vai adorar a companhia dela, com licença falou Sara afastando-se.
- Foi um prazer. Respondeu Toninho saindo com Margarita.
Sara continuou cordialmente falando com um, recebendo outro, resolvendo algumas coisas.
Lá pelas duas da manhã entra Manuel que foi encaminhado ao salão principal.
Estava acompanhado de um amigo que logo se dispersou dele conduzido por uma das moças. Manuel estava muito cansado e fora lá somente por curiosidade, para conhecer mesmo. Não que não frequentasse tais lugares, mas esse era diferente e comerciante como era, queria conhecer.
Desde que casou com Rosa, percebeu que ela não satisfaria seus desejos da carne. Não se importava, pois a amava profundamente e para ele ela era uma santa e não deveria se submeter aos desejos animais dele. A respeitava e a preservava de suas taras sensuais. Pensou nela com carinho, mas logo se distraiu admirado com tanto luxo e beleza. Avistou Toninho num canto e cumprimentou-o com a cabeça. Ainda eram amigos. Os dois enriqueceram, ele no ramo da padaria, Toninho no ramo da malandragem, mas ainda eram amigos.
Rosa desconfiava, mas não impedia a sua presença e de vez em quando ele ia visitá-los com as desculpas de manter as velhas amizades. Manuel estranhava tal atitude, mas aceitava afinal, passaram muitas coisas juntos e eram velhos conhecidos. Esquecera logo que Toninho teve interesse em Rosa, já que ele nunca demonstrou nenhuma falta de respeito com ela.
Sara foi ao quarto refazer a maquiagem e ainda na escada viu Manuel. Nunca deixou de vê-lo nas várias fotos que o detetive a enviara. Mas assim de perto estava radiantemente belo. Alto, um pouco mais forte, seus cabelos mostravam mexas grisalhas que o deixavam mais charmoso ainda. Seu rosto conservava um corado em sua pele alva, seu nariz afilado e perfeito dava uma harmonia em sua fisionomia. Só não conseguiu identificar os olhos, teriam os mesmos tons esverdeados? Nas fotos preto e branco não dava para saber, só via os cílios grandes e negros.
Sara prendeu a respiração, seu coração palpitava de emoção. Provavelmente levou uns longos segundos para se recompor e descer delicadamente as escadas. Foi em sua direção.
- Boa noite senhor, seja bem-vindo em nosso casarão. Chamo-me Sarita e o senhor?
- Manuel, muito prazer! Estou encantado com tudo, parabéns!
Sara fixou o olhar em Manuel, mas para sua surpresa ele não a reconheceu. Não disse nada, chamou uma das meninas e pediu-lhe que acompanhasse Manuel. Precisava se afastar dali, caso contrário desmaiaria. Manuel se afastou e Sara foi até o bar, precisava de uma bebida.
Toninho prestou atenção em tudo e percebeu que Manuel não reconhecera Sara. Decidiu não dizer nada. Não sabia por que, mas neste momento achou que isso era melhor, principalmente porque  percebeu que Sara não se revelara a Manuel.
Amanhecia quando os últimos cavalheiros deixaram o casarão. Sara estava exausta, mas muito feliz. Tudo deu certo, sua festa foi um sucesso e o caixa faturou alto.
Neste fim de semana o casarão não abriria, precisava ser limpo e organizado. Só voltaria a funcionar na terça-feira e enquanto isso ela teria tempo para tomar algumas providências, principalmente tentar trazer mais algumas moças, pois com certeza a frequência seria alta.
Mantinha na casa vinte mulheres, escolhidas a dedo. Mas já estava providenciando outra casa que serviria para abrigar mais algumas. Era ali próximo ao casarão, bem mais simples, mas que deixaria as meninas confortáveis.
Subiu e se jogou na cama feliz e realizada, beijou a foto de Manuel, fechou os olhos e adormeceu. Neste instante seu espírito se desloca do corpo e flutua. Desta vez Sara não é acometida de pesadelos.
Maria das Dores conseguira, após muita insistência, uma concessão para que Sara pudesse ter um encontro com ela.
Ficara afastada de Sara por um longo período, fora convencida de que ela precisava caminhar mais livremente na tentativa de aproveitar melhor a chance escolhida e concebida a ela nesse período.
O encontro foi emocionante, Sara não conseguia acreditar no que via. A mãe ali diante dela, igualzinha como quando deixou a casa naquela noite horrível. Mas alguma coisa diferente ela notava, uma luz suave e um perfume de jasmim que tomava o ambiente e a embriagava de satisfação.
- Mamãe? Como pode? Onde estou?
- Calma Sara! Não se agite, você precisa de forças para entender o que se passa.
- Estou sonhando? E abraçando a mãe Sara não consegue conter as lágrimas.
- Sara minha querida, você está aqui por uma concessão misericordiosa do Pai amado.
- Mas, mamãe? Onde estou? No céu?
- Não minha querida, esse é um encontro de almas que precisava acontecer. Sempre estive ao seu lado, mas precisei me afastar para que você sozinha encontrasse seu caminho na chance que o Pai te concedeu. Mas vemos que você não aproveitou e está se embrenhando por caminhos tortuosos que lhe implicará muitas dívidas futuras. É preciso que seja esclarecido algum fato para que entenda e aproveite ainda a oportunidade de mudança, para o seu bem.
E na mesma hora entra uma mulher que Sara reconhece imediatamente. É Elizabete a ex-esposa de Alberto. Sara grita; - Estou morta?
- Não minha filha, diz Maria das Dores, seu corpo físico dorme tranquilamente em seu quarto. Ouça o que essa moça tem a dizer.
Em lágrimas Elizabete começa a contar:
- Embora você não se recorde, fomos irmãs gêmeas numa encarnação longínqua. Eu me chamava Sofia e você Frida. Amávamos o mesmo homem. Ele se chamava Bernardo era nobre e sua família muito amiga da nossa. Já sabíamos que as famílias tinham um acordo para que ele se casasse com uma de nós duas. Você era doce e meiga, tinha um temperamento calmo e nunca discutia nem disputava nada comigo, nós nos amávamos. Eu tinha um temperamento forte, era dominadora e rebelde. No dia da festa em que se firmaria o laço do matrimônio, Bernardo escolheu você para casar. Eu fiquei com ódio e resolvi me vingar, a inveja me dominou, não conseguia suportar ver você sempre sendo a mais elogiada, a mais querida. Armei muitas intrigas e mentiras, assim consegui com que Bernardo desistisse de você e se casasse comigo. Fui muito feliz com ele, mas você entristeceu, definhou e morreu. Sabia que Bernardo te amava, mas ele era louco para ter um filho, assim quando nasceu nosso primeiro filho conquistei definitivamente o amor de Bernardo, mas me sentia culpada pela sua morte, não queria isso, só desejava não perder mais uma vez e Bernardo foi a minha chance. Mesmo tendo ele somente para mim, o arrependimento não me deixou em paz e também fui definhando, vindo a morrer no parto de nosso segundo filho. Bernardo, com a minha morte, se trancou na tristeza e no luto até o fim de seus dias. Lutei muito após a morte, meu espírito vagou séculos à tua procura. Soube muito tempo depois que após se debater na revolta e na tristeza e com a ajuda de benfeitores você aceitou reencarnar para iniciar seu processo de evolução. Eu precisei de muita ajuda para me equilibrar e só voltei para que, dando chance de você ter uma vida melhor, pudesse seguir mais facilmente para o caminho do bem. Acompanhei as suas duas reencarnações passadas e pude perceber o quanto a minha atitude egoísta ajudou para que você sucumbisse nas tentações. Por isso vim como Elizabete, com o físico igual ao seu, para que me casando com Alberto que foi Bernardo e deixando o caminho para você livre, essa sua nova vida lhe proporcionaria um caminho mais digno e lhe desviaria o pensamento das artimanhas das paixões, vinganças e trevas.
Sara não pôde conter as lágrimas, sua memória lhe dava fleches de lembranças e não conseguia conter a emoção.
Elizabete continua.
– Querida irmã, desista de seus planos. Não paralise a conquista que conseguiste nestes anos ao lado de Alberto.
Sara não consegue mais suportar e entra em crise. Maria das Dores resolve encerrar o encontro e retornar com Sara. Ela sabia que Sara não se lembraria de nada quando acordasse, mas tinha esperança que ela pudesse ter impressões negativas sobre o caminho escolhido e retomasse a vida digna que viveu nos anos em que estava com Alberto. Elizabete não conseguiu disfarçar a pontinha de desânimo, fracassara com Sara na tentativa de mostrar-lhe que na atual escolha não teria um caminho feliz e que ela envolveria tantas vidas nessa vingança, nesse desejo e que seus nós seriam muito apertados para desatá-los posteriormente.
Chorou de tristeza, pedindo perdão ao Pai por não ter cumprindo devidamente seu papel naquele resgate. Mas era o livre arbítrio de Sara e Elizabete sabia que ele falaria mais alto, pois Sara não conseguiu, apesar das chances, superar suas mágoas preferindo permanecer nas vinganças e artimanhas para suprir suas frustrações. Nada mais poderia fazer, não estava ao seu alcance.
Sara abre os olhos e os sente inchados, seu rosto está úmido. Teve a impressão que tivera um sonho estranho. Era como se ela conversasse com ela mesma. Mas, não se lembrava de nada. Olhou o quarto e não se sentiu feliz, era como se de uma hora para outra nada daquilo fizesse mais sentido. Começou a pensar:
- Será que tudo isso valia a pena? Será que Manuel a amaria um dia? Por que seu coração não conseguia parar de bater quando pensava nele? Lembrou-se de Alberto com tristeza. Ela não o amara como amava Manuel, mas foi feliz com ele. Ele era bom, doce e amante perfeito. Ela soubera reconhecer e não decepcioná-lo. Foram felizes. Mas, a vida estava dando outra chance para ela.
Na verdade não sabia por que escolheu esse caminho. Tinha dinheiro, era reconhecida socialmente na Bahia. Mas suas origens não a deixavam esconder definitivamente seus dons e aquela vida a atraía, aquele ambiente a seduzia. Não se prostituiria, mas não deixaria de sujar as mãos nesse negócio, pois facilitar a prostituição de outros a nivelaria com a condição.
Sacudiu a cabeça, desviou os pensamentos e voltou a dormir. Precisava descansar, teria muito trabalho daqui para frente.
Maria das Dores observava tudo e com lágrimas nos olhos retornou para junto de Elizabete. Sua tentativa se findara no momento, agora era preciso esperar e ter esperanças que o livre arbítrio de Sara escolhesse o melhor caminho.   



Capítulo II

Toninho voltou para casa pensativo. Por que será que Sara não demonstrou que o reconhecera? O que ela pretendia? Ficou admirado com a mudança dela, mas ele também mudara nestes anos. Não tanto quanto ela. Estava requintada, comedida, educada. Suas feições pareciam mais finas e demonstrava muito trato ao falar e ao andar.
Embora soubesse que aquela casa nada mais era do que uma casa de prostituição, tudo lhe parecia diferente. Não sabia dizer se por causa do luxo ou por causa dela. Mas descobriria, com certeza.
Toninho morava sozinho numa casa grande e com um luxo vulgar. Conseguira seu lugar ao sol. Com muito custo galgara uma posição respeitável mesmo que pela pior extirpe da malandragem.
Era temido. Saíra da Lapa há três anos, a malandragem de lá não lhe trazia muitos frutos. Galgara outros caminhos, nos jogos, na prostituição e no tráfico.
Enriquecera. Teve que tirar muitos de seu caminho, tomar a força, enganar, dissimular. Nunca se casara. Tem várias mulheres e uma que lhe frequenta a casa. Seu coração se fechou para o amor. Nele mora um desejo impossível e desiludido se fechou para o amor puro, o carinho sincero o desejo de formar família, de parar.
Seu coração pertencia a Rosinha e, rejeitado por ela, se recusa a se abrir. Se sente um cão desprezado.
Em sua casa, muitas vezes solitário desejou morrer, deixar aquela vida, esquecer-se de tudo, fechar os olhos e dormir sem aqueles pesadelos horríveis que o atormentam, sem o sangue, sem o punhal, sem os gritos. Pega um copo enche de uísque e bebe quase de uma golada. Deseja dormir. De que vale aquela casa, aqueles carros e todo o dinheiro que tem? Trocaria tudo por Rosinha.
Achou que melhorando de vida teria alguma chance com ela. Mas, ela escolheu Manuel, seu amigo de longa data. A única coisa que conquistara foi Patricinho que trabalhava com ele, era de sua confiança, quase um braço direito.
Desde que ele foi morar no cortiço com a família que Toninho percebeu a rebeldia do menino. Folgado, metido a valente. Largou os estudos e vivia na vadiagem. Toninho adotou-o e aconselhou-o a voltar a estudar. Já estava ficando rico e precisava de um contador. Pagou a escola para Patricinho e o empregou. O menino tem talento e lhe tem fidelidade. Toninho gosta dele e o protege. Ele é irmão de Rosinha e de certa forma o mantém perto dela.
Lembra-se dos dias no cortiço, lembra-se do dia em que Rosinha chegou lá com a mãe e o irmão. Aquele sorriso doce, a voz suave o fez se sentir como uma criança que se apaixona pela primeira professora. Ela era a luz que adentrava aquele lugar de treva e sofrimento. Mas deveria saber que aquele anjo não aparecera para ele que já se encontrava no inferno.
Ferreira captava seus pensamentos e sorria. Estava satisfeito com o progresso de sua vingança. Ajudara Toninho a conquistar aquilo tudo, o desgraçando de vez. E o via melancólico e infeliz, mas não acabara, queria muito mais, o fim total quando Toninho pressionado, solitário e infeliz finalmente poria um fim em seu destino. Fazia tudo que podia para livrá-lo das armadilhas que o levariam a morte.
Inspirava Toninho, mudava seu rumo, mexia com suas idéias e desviava o quanto conseguia de seus inimigos, não era esse fim que pretendia para ele, seu encontro com Toninho seria de total domínio e só o suicídio lhe proporcionaria isso. Esperaria o tempo que fosse.
Ferreira gostou muito de rever Sara. Ela estava linda! Ficou o tempo todo ao seu lado naquela festa. Não a odiava, pelo contrário, a amava. Quando a olhava, parecia que via outra pessoa, alguém distante em suas memórias. Não lhe queria mal. Mas não deixaria Toninho ter nada com ela. Ele não a merecia. Era a escória e ela a dama.
Quando Ferreira viu Sara algo que há muito estava adormecido despertou um sentimento bom, o fez pensar em sua vida, algo distante em sua mente e de repente se sentiu triste.
Neste momento, espíritos de luz que há muito aguardavam uma oportunidade se aproximaram de Ferreira e ele, num relance, os percebeu. A luz que emitiam era suave e um perfume se fez sentir. Ferreira titubeou, sentiu um vazio e depois de anos chorou copiosamente.
Raios de pequenas luzes lilases atingiram todo o seu corpo, descendo suavemente sobre sua cabeça até os pés, fazendo-o adormecer. Mais que rapidamente pegaram Ferreira no colo e o levaram até uma reunião na casa de um colaborador encarnado.
Lá aconteceria uma sessão de desobsessão e os espíritos amigos tentariam uma comunicação de Ferreira para que pudesse conversar com o amigo doutrinador ali presente.
Num momento de alívio que sentiu repentinamente Toninho recostou-se no sofá na sala e adormeceu. Esse seria um sono tranquilo que há muito Toninho não tinha, já que Ferreira o atormentava por oito anos ininterruptamente.
Quando Ferreira despertou se viu numa sala em penumbra com várias pessoas, algumas agitadas, outras parecendo dopadas e uma mesa com algumas pessoas. Sentia-se tonto, mas pôde reagir.
- O que estou fazendo aqui? Onde estou? Quem são vocês? Ele já estava dando comunicação, foi com o auxílio dos trabalhadores do bem, incorporado ao médio mais experiente daquela sessão mediúnica.
O doutrinador, um velhinho bondoso e com anos de experiência, dotado de mediunidade de vidência, observou todo o procedimento e foi logo falando;
- Boa noite meu irmão. O que lhe traz aqui?
- E eu sei? Nem sei como vim parar aqui. O que deve ser isso tudo?
- Aqui é um lugar onde todos nós somos irmãos e trabalhamos em nome do nosso Senhor Jesus Cristo para que os que nos procuram sejam bem recebidos e carinhosamente ajudados.
- Mas quem disse que preciso de ajuda? Não pedi nada. Quero voltar para onde eu estava. Isso aqui é uma armadilha. Vocês não sabem com quem estão lidando.
- Irmão, você está muito nervoso, se acalme, vamos conversar. O que me diz?
- Não digo nada, quero voltar. Aquele miserável não vai se livrar de mim facilmente. Esbravejou Ferreira. O médium com bastante experiência se continha para não socar a mesa, nem avançar nos companheiros.
- Quem é esse que você chama miserável? Por que demonstra esse sentimento? Continuou o dirigente.
- Ele me matou, mas continuo vivo e vou me vingar!
- Então o irmão sabe que está em outro plano? Sabe que a vida continua e que nada do que pretendemos enquanto encarnado se acaba no túmulo? Perguntou o velhinho carinhosamente.
- Sei, sei que morri, mas também sei que posso me vingar, vou destruí-lo para que quando vier ter comigo, aqui deste lado o subjugue de vez. Pois por agora só posso inspirá-lo coordenando sua vida ao meu prazer. Não é difícil, ele me facilita muito.
- Mas irmão, e você? Você não se preocupa com a sua caminhada? Quanto tempo está nesta vingança? Não está cansado? Não quer descansar, libertar o irmão e seguir o seu caminho? Essa é uma oportunidade, aceita a ajuda dos nossos amigos que te trouxeram até aqui.
- Não, não vou com ninguém. Preciso voltar, estou perdendo tempo, me larguem, me larguem. E começou a gritar, a se agitar e com isso o doutrinador achou por bem iniciar uma oração enquanto os amigos socorristas adormeciam Ferreira.
            Mais tarde quando despertou do repouso na própria instituição que foi recebido, assustado buscou por Toninho e fixando seu pensamento nele retornou a casa, mas alguma coisa estava diferente nele. Era manhã e Ferreira notou que Toninho não estava em casa. Estranhou já que ele costumava acordar tarde geralmente na hora do almoço. Onde ele estaria?
Ferreira estava um pouco desconcentrado, a experiência que tivera o deixara inseguro e com medo. O que estaria acontecendo? Por que foi parar naquele lugar esquisito? E aquelas pessoas? Queriam convencê-lo a desistir, a ir para algum lugar, mas para onde? Não, não se deixaria cair mais nessa armadilha. Nada o tirará dos seus objetivos.
Já havia sido assediado por outras pessoas esquisitas, mas aquelas eram diferentes, tinham uma luz forte, uma fala mansa, não o obrigaram a nada. Os outros eram agressivos e tentaram convencê-lo a aceitar a ajuda que ofereciam, mas ele não aceitou, não precisava de ninguém, daria conta sozinho, era um soldado, tinha patente. Agiria só em seu objetivo. Percebeu que apesar de agressivos, não podiam obrigá-lo a nada. Logo percebeu que a sua vontade é que prevalecia assim os “esquisitos agressivos” desistiram, mas agora esses “esquisitos bonzinhos” o levaram para aquele lugar, mas nada o deteria  Toninho tinha que pagar o que fizera a ele. Concentrou-se em Toninho.
Ferreira já reparara que a sintonia de Toninho estava ligada a dele, assim fixando-o ao seu lado. Esses anos lhe deram experiência, a morte não era tão ruim assim só o que incomodava era o ferimento que nunca fechava, volta e meia sangrava. Mas, já se acostumara.
Toninho estava indo para o casarão, queria falar com Sara, mas de repente sentiu uma forte dor de cabeça e resolveu voltar para casa, iria outro dia falar com ela.
Chegando em casa sentiu uma sensação estranha, forte, sua cabeça explodia. Será que foi a bebida? Pensou. Mas nem bebeu muito, analisou. Sentiu-se fraco e resolveu dormir mais um pouco. Logo Gabriela chegaria. Precisava dar um tempo nessa relação, já estava ficando pressionado por ela. Fechou o olho e adormeceu. Ferreira riu com satisfação, conseguira trazer Toninho para junto dele. Deitou ao seu lado para descansar. Foram muitas emoções naquele dia.


Capítulo III

Quando Manuel chegou em casa já passava das três da manhã. Rosa estava dormindo.
Aquela semana não tinha sido muito fácil. Eles perderam Preta para aquela doença horrível.
Há três anos eles lutavam para que Preta se curasse, mas ela parecia que não desejava a cura. Desde que ficara viúva vivia reservada. Nunca tirara o luto. Manuel e Rosa tudo fizeram para que ela se alegrasse, fosse feliz, mas nada adiantou.
Quando casaram, Manuel e Rosa convidaram Preta para morar com eles, mas ela não aceitou preferia ficar no cantinho em que morava.
Manuel conservou a casinha a seu pedido e quando reformou o botequim transformando-o em padaria, também reformou a casa de Preta. Ela gostava de lá, dizia que sentia o seu Joaquim ali, ao seu lado. Manuel não quis contrariá-la, mas nunca a deixava pensar que estava abandonada.
A mãe de Rosa se afeiçoou a ela e elas sempre conversavam. Era como se as tristezas de ambas as consolassem.
Manuel e Rosa tinham cinco anos de casados e até agora não conseguiram ter filhos. Manuel era louco para ser pai. Pensava no que conquistara e se preocupava por não ter herdeiros. Sempre se perguntava o que havia com eles, por que Rosa não engravidava. Achou que fosse por causa da preocupação com a doença de Preta e com a depressão da sogra. Rosa era muito envolvida com ambas que a tomavam todo o tempo.
Com a morte de Preta a mãe de Rosa piorou e foi preciso interná-la numa casa de repouso para que fosse submetida a um tratamento rigoroso, pois até em suicídio ela falava. Patricinho pelo que sabiam trabalhava com Toninho, não gostavam muito, pois sabiam dos negócios pouco recomendados de Toninho, mas foi ele quem fez com que Patricinho estudasse, tomasse um rumo. Empregou-o como seu contador. De qualquer forma ele trabalhava, era independente, morava sozinho e não os incomodava.
Não tinha muito que reclamar, conseguira casar com a mulher que amava, conseguira se realizar financeiramente. Rosa era maravilhosa, a mulher que todo homem sonha e mesmo não tendo aquele fogo sensual e sua vida íntima ser morna, não se importava. Procurava satisfazer seus desejos da carne fora de casa, afinal esposa é sagrada e nem tudo que as raparigas realizavam eram dignos da santa do lar.
Manuel refletiu e entristeceu, não queria trair a esposa, mas o desejo masculino falava mais alto. Lembrou-se de Sara e sentiu saudades daquele corpo ardente, daquele fogo sensual. Onde andará ela? Não percebeu que estivera com ela há poucas horas.
Pensou que se tivesse um filho, talvez não saísse tanto, talvez não procurasse mais as farras. Rosa não reclamava de nada. Sempre solícita e carinhosa e às vezes até demonstrava sentimento de culpa por não engravidar.
Manuel tinha um sentimento de compaixão por ela que o enternecia e procurava não cobrá-la em nada. Ele não entendia muito as suas convicções. Rosa não tinha muitas amigas e a mais chegada era Margarida que conhecia desde adolescente. Frequentava a casa dela pelo menos uma vez por semana. Participava de um encontro que dizia ser para a caridade.
Manuel sabia que Rosa era adepta do espiritismo, influência de Margarida. Sempre a via lendo livros que ele achava muito complicado. Ele era católico, não praticante, mas esse negócio de espíritos ele não queria saber. Mas não proibia Rosa de ir. Respeitava a sua escolha e gostava de Margarida e de seu marido que era seu advogado. Eram amigos.
Ficou vagando em seus pensamentos até as cinco da manhã, quando resolveu tomar um banho e ir dormir.
Há algum tempo que não precisava mais madrugar para ir para os estabelecimentos. Tinha uma equipe de total confiança. Já contavam quatro padarias. Todas no mesmo sistema, pães diversos, doces delicados e variados, um canto em cada uma para o café com mesinhas.
Desde a primeira, no centro da cidade, onde virou o lugar de encontro dos poetas, literários, artistas e dos boêmios que voltando das noitadas procuravam um lugar agradável para tomar o café, que as suas padarias tomaram o gosto de uma clientela especial. Manuel conquistara a fatia que a Colombo não valorizava por ser muito sofisticada e cara. Manuel enriquecera. Não pretendia parar por ali.
Comprara alguns imóveis na zona oeste para alugar. Cercara com suas padarias os principais pontos. No centro, na Tijuca, em Copacabana e em Botafogo. Estava a vista de montar uma em Laranjeiras. Tinha tudo, embora Rosa gostasse de viver na simplicidade, não lhes faltava nada.
Rosa acordou e ainda teve tempo de beijar-lhe a face. Compreendia seu marido, não reclamava nem contestava seus atos. Manuel era trabalhador e esforçado, nunca lhe negara nada. Era feliz com ele e esperava completar definitivamente essa felicidade quando desse à luz o tão esperado filho. Sabia que Manuel queria muito. Sentia-se culpada. Procuraram médicos, mas não sabiam o que era.
A cada mês, quando as regras vinham uma pontada de decepção acometia e assim passaram os anos.
Margarida, sua melhor amiga, tinha dois filhinhos e ela e Manuel eram padrinhos de um. Percebia o rosto tristonho do marido quando brincava com o afilhado.
Questionava a amiga quanto às explicações que o espiritismo podia dar. Simpatizou-se por essa doutrina e sempre participava dos estudos na casa de Margarida.
Queria uma explicação que a fizesse entender por que não conseguia engravidar. A amiga a consolava dizendo que o Pai todo poderoso tinha as suas razões para cada situação envolvendo seus filhos.
Margarida lhe que tivesse paciência, que tudo tinha a sua hora de ser e que existiam muitas crianças órfãs precisando de amor, proteção e carinho. Mas Rosa não desistia, sentia que um dia poderia ser mãe e ao conversar com Manuel sobre o assunto ele dizia que não estava preparado para criar uma criança que não fosse sua, preferia aguardar os desígnios de Deus.
Rosa  preparou a mesa com o café da manhã para Manuel, sabia que mesmo ele estando um pouco mais livre dos horários, não conseguia ficar longe de seus negócios e logo acordaria para fazer as visitas habituais. Todos os dias visitava cada loja, dava instruções e fazia questão de cumprimentar os fregueses um a um. Às vezes ia logo cedinho, às vezes na parte da tarde e mesmo na hora de fechar gostava de estar a cada dia em uma. Sabia que a sua presença impunha mais disciplina e organização e que era preciso estar atento para o bom funcionamento de tudo. Rosa não reclamava, aceitava o pouco que Manuel lhe dedicava de tempo. Compreendia que se não fosse o esforço do marido nunca teriam o conforto que desfrutavam.
Rosa apressou-se, queria visitar a mãe na casa de repouso. Ela continuava definhando, pediu ao médico para liberá-la para que cuidasse dela em casa, mas não permitiram, pois constantemente ameaçava se suicidar. Era triste a situação da mãe.
Mesmo com todo o esforço em compreender o espiritismo, Rosa tinha dificuldades em assimilar as explicações para os problemas que acometiam a mãe.
Numa sessão mediúnica na casa de Margarida e cuja preocupação a fez pedir ajuda, recebeu uma comunicação que dizia que sua  mãe era vítima de uma obsessão passiva do marido. Explicaram-lhe que dona Maria de Fátima, anos a fio, chamou pelo marido que, perturbado, se aproximou dela ficando ao seu lado até hoje e sentindo a presença dele que sintonizava pena dela. Maria de Fátima assimilava essa tristeza deprimindo-se cada vez mais. Sugeriram que levassem a mãe para uma sessão de desobsessão, mas Rosa não conseguiu levá-la.
Dona Maria de Fátima era católica fervorosa e não aceitava a escolha da filha em seguir o espiritismo. Foram feitas através da desobsessão várias tentativas de afastar José Patrício da esposa, sem sucesso, pois a mãe de Rosa não desvencilhava o pensamento num só segundo dele e o desejo de encontrá-lo, fazia com que ele fixasse presença à espera dela.
Rosa orava fervorosamente pedindo aos bons espíritos que protegessem a mãe, mas ela não ajudava, permanecendo na tristeza profunda. Até nos momentos em que passou junto a Preta, não desligava do marido, principalmente porque Preta também permanecia saudosa do seu Joaquim e ficavam as duas, horas, a relembrarem saudosas, melancólicas e nostálgicas.
Rosa encontrou a mãe dormindo, o médico explicou-lhe que ultimamente ela precisava ficar um tempo maior sedada, não conseguiam controlá-la em suas reações e para que não se machucasse a sedavam. Rosa retornou para casa entristecida. Não tinha mais esperanças de ver a mãe recuperada. Só lhe restava orar.
Quando chegou não encontrou mais Manuel em casa. Foi cuidar de seus afazeres com os pensamentos na mãe.
Nesta noite Manuel retornaria ao bordel. Gostou do lugar. Sempre foi exigente nos negócios e admirava o bom gosto do casarão. Nem imaginava que seria uma noite inesquecível em sua vida, pois iria ter um encontro que jamais esperaria acontecer.
Capítulo IV

Toninho resolveu procurar Sara assim que o bordel voltasse a funcionar. Tentara falar com ela, mas não lhe permitiram a entrada. Ficou esperando horas na calçada com a esperança de que ela saísse, mas ela não apareceu. Não pôde esperar mais, tinha muitas coisas para fazer, o carnaval estava chegando e ele precisava verificar com Patricinho todos os gastos, patrocínios, etc.
Embora estivessem numa repressão muito grande, o desfile ia acontecer e mesmo com as  dificuldades na escolha do tema, tudo ficou lindo. Tinha esperanças nesse desfile. Era o padrinho da escola e seu nome estava em jogo.
Na semana seguinte Toninho não perdeu tempo e assim que o casarão abriu, lá estava ele pronto para entrar e procurar por Sara.
Informaram-no que madame Sarita só descia após as vinte e duas horas e que era impossível ir até o seu quarto. Toninho esperou pacientemente.
Finalmente às vinte e três horas Sara desceu as escadas. Lindíssima! Toninho ficou encantado com o que via. Usava um vestido justo apresentando um decote profundo, deixando toda a costa aparente. Os cabelos presos em um coque e uma encharpe de pele de algum bicho que Toninho achou parecido com um esquilo. O rosto em uma maquiagem que fazia sobressair os olhos e a boca e num sorriso apresentava as duas covinhas que ele conhecia muito bem.
Esperou que descesse e aguardou os cumprimentos. E quando ela se aproximou do bar para pegar uma bebida, Toninho se apressou para o encontro.
Ferreira acompanhava tudo colado em Toninho. Deslumbrava-se com a visão de Sara.
Aproximou-se o máximo que pôde e ao pé do ouvido de Sara disse:
- Estou encantado com o que vejo.
- Boa noite senhor Antônio, como o senhor está?
- Ora,ora Sara, não me reconhece?
- Me chamo Sarita agora, e vejo que não me esqueceu. Afirmou em tom de deboche.
- Como poderia? Sempre esteve em meu coração.
- Vejo que não mudou nada, só melhorou as roupas, o perfume, mas continua o mesmo cafajeste de sempre. Disse Sara se afastando de Toninho.
- Não diga isso meu bem, sou outra pessoa, mas a minha memória continua a mesma, não esqueço um rosto bonito de forma nenhuma. Mas você? Mudou muito. Está refinada e educada. Teve bons professores. Mas percebo que não negou a origem e retornou para o seu lugar, mesmo que sofisticado, ainda  fede a orgia.
- Exijo que me respeite, ou chamo o segurança. Minhas escolhas são problema meu e não estou mais sob o seu jugo. Aqui mando eu. E vá logo dizendo o que quer? Sara estava furiosa.
- Calma amor, não quero exigir nada. Estou feliz por revê-la, podemos ser amigos novamente. Falou Toninho amansando a voz.
- Para começo de conversa, agora não me chamo mais Sara, portanto se dirija a mim por Sarita e quanto a sermos amigos, tudo bem. Mas, de igual para igual, não sou mais a sua prostituta. Vamos sentar ali para conversarmos.
Toninho acompanhou Sara até uma mesa reservada, sentaram-se e cada um pediu uma bebida. Conversaram algum tempo, tempo suficiente para que Sara soubesse de tudo o que ocorreu nestes quase dez anos de ausência. Não comentou com Toninho o que sabia sobre Manuel. 
Por volta de meia noite, Manuel entra no casarão, desta vez sozinho. Aproxima-se do bar e pede um vinho. Pega a garrafa e procura uma mesa, passa pela mesa onde está Toninho e Sara e ao avistar o amigo para um instante para cumprimentá-lo. Quando olha para Sara, sente que conhece aquela mulher, cumprimenta e diz;
- Não te conheço de algum lugar?
- Não será daqui mesmo? No dia da inauguração? Pergunta Sara.
- Pode ser, mas tenho a impressão de que você me é familiar. Toninho ouve e fica quieto, quer saber de Sara primeiro por que ela não se revelou no outro dia e por que se calou também agora. Manuel pede licença e vai sentar numa outra mesa. Toninho aproveita.
- Por que você não se revelou para o Manuel? O que pretende?
- Sara já sabendo por Toninho de sua paixão por Rosa, resolve revelar sua intenção.
- Então você, nestes anos todos, não esqueceu de Manuel? Perguntou Toninho.
- Não. Amo-o loucamente e nunca desisti de tê-lo para mim.
- Interessante, mas como pretende fazer com que ele se separe de Rosa? Isso é impossível. Manuel venera a esposa e mesmo ela não o satisfazendo sexualmente, ele não se importa, procura as mulheres da rua para se satisfazer, mas separar-se dela, acho impossível. Rosa é pacata e dócil, mesmo que saiba que Manuel tem mulheres na rua, não o deixará. É conservadora e foi criada para o lar, para obedecer ao marido. Casou na igreja e não aceita separação.
- Não esperei estes anos todos em vão. Você não ama a Rosa? Então podemos nos unir para conseguir o que cada um deseja. Agora vamos nos separar, vou conversar com ele e começar meu plano. Venha aqui amanhã à tarde para conversarmos melhor.  Adeus.
Sara se aproximou da mesa de Manuel e sentou-se ao seu lado. A luz estava fraca, emitida só por um abajur vermelho e Manuel não podia observar direito o rosto dela. Sara ofereceu companhia e beberam juntos.
Quando a garrafa se esvaziou, pediu outra e notando que Manuel já estava meio alto, pegou em sua mão e o conduziu até o seu quarto. Seu coração disparava e um suor frio a invadiu por todo o corpo. Manuel deixou-se conduzir, tinha a impressão de recordar algo, mas se deixou levar.
Sara apresentou a sua melhor performance numa mistura de paixão, amor, desejo e fúria. Nunca amara ninguém daquela maneira, conduzia e se deixava conduzir. Nada falaram, ardiam naquele amor carnal que, em êxtase, vararam a madrugada. Quando Manuel acordou, já era manhã e estava só naquela cama e naquele quarto colorido e perfumado.
Manuel levantou-se de impulso, atordoado e com dor de cabeça. Olhou a hora, eram oito horas da manhã. Vestiu-se rapidamente e saiu. Não viu a mulher que lhe seduziu, tudo parecia um sonho e fleches  vinham em sua mente. Sentiu-se diferente. Não viu ninguém, então saiu apressadamente.
Chegou em casa e não encontrou Rosa. Foi até a cozinha e viu a mesa posta para o café da manhã. Tomou um café preto e foi tomar banho. Não percebeu o bilhete de Rosa perto da cesta de pão. Onde Rosa terá ido? Pensou. Apressou-se, pois precisava fazer as visitas diárias.
Rosa foi visitar a mãe, tivera um sonho ruim e não estava sossegada. De fato, quando chegou na clínica os médicos não foram otimistas. Dona Maria de Fátima estava muito debilitada e eles se preocupavam com ela. Ela não reagia ao tratamento e agora, estava dizendo que o marido estava ao seu lado, que tinha vindo buscá-la. Ela delirava, diziam eles. Rosa entristeceu, sabia da condição da mãe, da obsessão do pai e temia que isso fosse uma aproximação de seu desencarne. Ia imediatamente procurar Margarida para que a orientasse.
Rosa pensou em Manuel, sabia de suas farras, de suas necessidades, aceitava e não reclamava. Mas ele nunca tinha dormido fora de casa em todos esses anos de casados.
O que teria acontecido? Amava-o, não queria acreditar na possibilidade dele a deixar. Se a mãe morresse, só lhe restaria Patricinho. Mas ele era tão independente, vivia num mundo que não era o dela. Neste tempo em que a mãe estava na clínica Patricinho não fora fazer uma visita sequer à mãe. Mesmo tendo melhorado a vida, nunca perdoou a mãe pelos anos de dificuldades que passaram. Patricinho se desligara da família e raramente visitava a irmã. Às vezes, por insistência de Toninho, o acompanhava até a sua casa, mas arrumava logo um pretexto e ia embora. 
Rosa ficava triste, mas respeitava o irmão, nada dizendo.
Quando chegou em casa não encontrou mais o marido, percebeu a xícara suja de café e observou que o bilhete estava no mesmo lugar que deixara. Providenciou o almoço e foi procurar a amiga para pedir orientação.
Margarida a recebeu com carinho. Rosa explicou o que estava acontecendo com a mãe. Queria saber da amiga se seria possível uma nova sessão de desobsessão para tentarem ajudar a mãe que estava totalmente entregue àquela situação. Margarida prometeu conversar com dona Amélia que era quem conduzia as sessões.
Margarida possuía a coleção dos livros de Allan Kardek, trouxera de Paris em sua viajem de lua de mel. Acompanhando a situação de Rosa com sua mãe, traduziu para ela o capítulo vinte e três do livro dos médiuns que diz respeito às obsessões, deu a ela para que lesse e assim pudesse compreender melhor e ajudar a mãe.
Rosa agradeceu e prometeu ler e estudar com atenção e se despediu da amiga com esperança no coração.
Manuel fez as visitas, providenciou as encomendas das mercadorias, trabalhou sem parar, mas em seus pensamentos aquela noite passada não saía de sua cabeça. Quem era aquela mulher? Agora um pouco mais equilibrado, podia lembrar-se de muitos momentos daquela noite. Embora não se lembrasse de fazer sexo daquele jeito, aquela volúpia que o envolvera em gozos nunca sentido, algo não lhe era estranho. Quem seria ela? Não se lembrava do seu rosto, o quarto estava na penumbra. Não hoje, mas com certeza voltaria lá para conhecê-la. Retornaria para casa um pouco mais cedo. Não queria magoar mais a sua Rosa.




Capítulo V

Toninho se afastou e foi buscar diversão com uma das garotas. Conhecia Sara e sabia que ela ia cumprir o que falara. Estava excitado com a possibilidade de poder ter Rosa para si.
Ia se aliar sim a Sara, não teria escrúpulos para alcançar o seu desejo. Rosa não tinha filhos, não seria difícil, caso Sara fosse hábil em tirar Manuel do caminho. Manuel já tinha tido um relacionamento com Sara e se bem se lembrava, ele gostava muito, tinha até comentado o desejo de tirá-la daquela vida. Só quando conheceu Rosa é que desistiu de Sara. Não seria tão impossível um novo relacionamento entre eles. Sara tinha talento, estava mais experiente, tinha dinheiro e pelo que conversaram, ela não pouparia recurso e nem estratégias para conseguir o que queria.
Ferreira acompanhou tudo e ficou surpreso com as intenções de sua amada. Não se alterou, afinal, ele não estava mais vivo, não poderia oferecer nada a ela. Seu objetivo era Toninho, não se ocuparia de Sara. Aproveitou a noite no deleite dos prazeres de Toninho com a acompanhante da noite.
No dia seguinte, após o almoço, Toninho foi se encontrar com Sara. Quando chegou ao casarão, Sara estava agitada, providenciando uma série de coisas.
Quem o recebeu foi Odete que pediu que ele aguardasse numa sala reservada. Ofereceu-lhe uma bebida, que Toninho aceitou de pronto. Queria estar um pouco relaxado para aquela conversa. Pediu uísque e foi aguardar na sala indicada.
Meia hora depois Sara vai ao seu encontro. Estava radiante e não escondia a felicidade. Não foi difícil adivinhar por quê. A noite tinha sido proveitosa para ela e não fazia questão de esconder.
- Pelo visto já deu o primeiro passo. Manuel não só caiu na sua rede como provavelmente ainda não sabe quem o fisgou. Caso contrário teria me dito.
- É verdade, a noite foi maravilhosa e ele nem sabe que foi com a sua Sara de antigamente.
- Bom, depois de ontem o que você pretende fazer?
- Por enquanto nada, vou aguardar que ele volte.
- Bom Sara, espero que não se esqueça que temos um acordo. Você quer Manuel e eu quero a Rosa.
- Não Toninho, não vou esquecer, mas vamos esperar um pouco, preciso reconquistá-lo primeiro.
- Mas me conta Sara, como você conseguiu tudo isso? Conheceu algum coronel por onde você andou?
- Ora Toninho, isso não é da sua conta, o que importa é o agora. E por falar em agora, preciso fazer algumas coisas, venha outro dia para conversarmos mais, mas não comente com Manuel da nossa aproximação, pelo menos por hora.
- Ok, até mais. Despediu-se de Sara e foi embora.
Ferreira acompanhou tudo de perto, estava ansioso por ver os planos de Toninho e Sara começarem, via nisso um profundo e negro destino para o seu “pupilo”, percebia o emaranhado de destruição que esse plano acarretaria.
Sorriu satisfeito, nem precisava muito esforço para que Toninho se afundasse cada vez mais no descontrole de suas paixões. Não gostava muito de ver Sara, a sua Sara envolvida nisso, mas ela é quem estava escolhendo e percebia que os dois se assemelhavam. Se ela estava ajudando Toninho a cair no poço, então que fosse.
Em um canto Maria das Dores observava. Desde que Sara voltou para o Rio que se mantinha numa faixa vibratória semelhante a de Toninho, atraindo  e mantendo Ferreira junto deles.
Isso fazia com que Maria das Dores mantivesse uma distância. Não que ela não pudesse se aproximar e ou até intervir, mas as escolhas devem ser respeitadas e Sara deveria ter no mínimo uma pequena vontade de ser ajudada.
Sara, naquele momento, só solicitava intervenção às suas paixões, sejam elas materiais ou sentimentais.
Pretendia usar de todo recurso conquistado para levar a termo o seu plano. Nada adiantara para que demovesse dessa idéia. Usava da oportunidade que teve de mudar a sua vida material, conquistada não por merecimento, mas por concessão de espíritos amigos, para que dessa forma se ajustasse num caminho melhor.
Alberto lhe dera amor, dinheiro e prestígio, mas a viuvez lhe trouxe à tona as paixões antigas e, ao invés de seguir no bem, retrocedeu aos caminhos tortuosos da vingança, da exploração sexual e da luxúria escolhida. Maria das Dores nada podia fazer por ela.
Aguardaria silenciosamente um sinal, pequeno que fosse para que dessa maneira retornasse ao seu encontro em auxílio. Assim, partiu.
Toninho resolveu visitar o amigo naquele dia. Sabia que Manuel ficaria até o final da tarde na padaria de Copacabana, pois essa era a última que visitava fechando o dia. Manuel era previsível, raramente saía da rotina.
Queria saber o que ele pensava da noite anterior, assim partiu para Copacabana. Durante o trajeto pensava como iria abordar Manuel sobre o assunto, não podia falar diretamente que sabia da noitada. Enquanto dirigia o seu carro, pensava o que falar.
Quando chegou, encontrou Manuel um tanto atarefado, estava apressado para resolver tudo e retornar para casa. Manuel o cumprimentou:
- Boa tarde Toninho, o que te trás aqui? Veio lanchar? Então fique à vontade. Disse Manuel.
- Boa tarde Manuel, vim resolver um negócio aqui perto e aproveitei para desfrutar das delícias servidas aqui. Tão famosas que todos comentam.
- Fique à vontade, estou um pouco atarefado, mas logo me sento com você. Pode pedir o que quiser, é por minha conta.
- Deixa disso Manuel, amigos, negócios à parte. Disse Toninho num sorriso disfarçado.
Pouco tempo depois Manuel senta-se ao lado de Toninho. Pergunta como está Patricinho, que não tem ido ver nem a irmã, nem a mãe.
- Patricinho é rebelde, sempre foi, ainda não se conforma com o destino da família, mesmo após esses anos e as coisas terem melhorado com o casamento da irmã e a independência dele. Culpa o pai pelo estado da mãe e não perdoa a  mãe por se deixar abater a ponto de adoecer. Justifica Toninho.
- Eu sei de tudo isso, mas a irmã não tem culpa e sente muito esse afastamento. Dona Maria de Fátima não anda bem, está internada e os médicos não são otimistas. Ele poderia pelo menos fazer uma visita para ela de vez em quando. Retruca Manuel.
- Bom coração da gente é casa que não se conhece, mas vou tentar falar com ele. Diz Toninho.
- Eu agradeço. Mas e as novidades?
- Eu é que pergunto. E a noite passada? Te procurei e não te vi mais, não ficou muito tempo no casarão? Pergunta Toninho dissimulando.
- Não, eu não fui embora. Sentei num canto, queria beber um pouco um bom vinho, mas sentou-se comigo uma rapariga e ficamos bebendo, depois, não consigo me lembrar de muita coisa, acordei no dia seguinte assustado. Tenho lembranças em fleches, bebi demais. Mas fiquei maluco com aquela mulher. Preciso saber quem é. Para você ter uma idéia, desde que me casei nunca dormi fora de casa,
até parece que tinha algo em minha bebida.
- Acho que não Manuel, aquele casarão é luxuoso, não iriam se arruinar com esse tipo de coisa. Afirmou Toninho.
- É pode ser, mas foi tudo muito esquisito.
- Você vai voltar lá? Perguntou Toninho.
- Vou, quero desvendar esse mistério. Você sabe, eu amo a minha mulher, Rosa é tudo para mim e não saberia viver sem ela, mas tenho as minhas necessidades de homem. Esposa é sagrada. E gostei daquela mulher. Voltarei lá.
- Isso é, amigo, esposa é esposa, mas precisamos das raparigas. Toninho disse isso, com a intenção de reforçar o desejo de Manuel.
- Bom Toninho, preciso ir, depois de ontem quero estar cedo em casa.
- Tudo bem, só vou pagar a conta. Quer carona? Sei que você prefere o bonde, mas me parece cansado. Ofereceu Toninho.
- Quero sim. Afirmou Manuel.
E foram embora.


Capítulo VI

Toninho acordou esbaforido, não tinha dormido bem, estava agitado. Fora dormir já era quatro da manhã, não tivera um bom dia. Parecia que aquele era um dia daqueles em que nada dá certo.
Tivera problemas com algumas prostitutas que trabalhavam para ele. Já algum tempo que um grupo de travestis estava tentando dominar os ganhos da Cinelândia e sempre ocorriam brigas infernais entre eles e as suas mulheres. Eram violentos e volta e meia atacavam com suas navalhas. Teve problemas também nos pontos de aposta e para piorar, alguns malandros do Estácio estavam tentando “pegar” seus pontos nas proximidades.
Mas, o pior de tudo eram os pesadelos. A todo instante parecia que corria, corria e não conseguia sair do lugar. Tivera a impressão que quem o perseguia era Ferreira. Mas não tinha certeza. Tanto tempo já se passou, por que estava lembrando-se daquele desgraçado?
-Que esteja no inferno! Gritou exteriorizando seus pensamentos.
Não estava bem. Sua revolta não era só por causa disso, estava impaciente com o comportamento de Sara. Já tinham seis meses que ela se encontrava com Manuel. Ele há muito já estava totalmente seguro em suas teias. Mas, alguma coisa estava errada, pois o combinado era que ela o tiraria de Rosa, mas ele não estava vendo isso.
Manuel estava mais cauteloso, embora preso àquela sensualidade, não deixava com que Rosa desconfiasse de nada. Por que Sara não fazia nada? Por que aceitava a migalha que Manuel lhe dava? Por que tudo parecia calmo e resolvido? Toninho não se cansava de perguntar a si mesmo onde estava enganado nisso tudo.
Resolveu procurar Sara e ter uma conversa definitiva com ela e ia naquele dia mesmo. Chegaria mais cedo no casarão e ela teria que recebê-lo.
Saiu para o escritório, pois tinha uma reunião com Patricinho. Sua escola perdeu o campeonato do carnaval, isso não era bom para os negócios e nesses seis meses não ganhara dinheiro com ela. Estava pretendendo fazer um galpão para os ensaios e explorar as bebidas. Mas teria que esperar um pouco. Que diabos! Pensava.
Eram vinte e uma horas quando chegou ao casarão. Como sempre foi Odete quem o recebeu e dizendo da impossibilidade de Sara o receber no momento, pediu que ele esperasse no bar. Mas Toninho não se conformou e subiu as escadas correndo, gritando por Sara. Odete gritou pelo segurança, mas Sara apareceu nas escadas e mandou que Toninho subisse. Queria mesmo falar com ele.
- Não gosto de escândalos em minha casa, disse Sara. O que quer?
- Preciso falar com você. Não estou entendendo o que está acontecendo. E o nosso plano? Não suporto mais esperar. Você acendeu uma esperança que estava guardada em meu peito e agora ela clama por isso! Falou Toninho quase gritando.
- Mas o que você acha que está acontecendo? Minha parte eu já fiz. Afirmou Sara.
- Como assim? Manuel não se separou de Rosa e pelo que vejo você não está se esforçando para isso. Estive com ele esses dias e ele me falou que assim está bom, que não desmanchará a sua família em hipótese nenhuma. E você? O que diz?
- Calma Toninho! Manuel me disse que Rosa perdeu a mãe, estávamos ainda recentes. Rosa ficou muito só, não quer magoá-la. Eu amo o Manuel, não quero perdê-lo. Não posso exigir que se separe agora dela. Se tiver pressa, faça alguma coisa. Hoje Manuel vem aqui, geralmente fica até umas duas da manhã. Por que você não tenta com a Rosa? Vai lá na casa dela, faça uma visita. Tente alguma coisa, jogue algum veneno. Aja também! Desde que Manuel me reconheceu que não paramos mais, sinto que ele me ama do seu jeito, mas ama. Temos que esperar um pouco para que ele não consiga ficar longe de mim.
- Você quer que eu vá até Rosa e tente seduzi-la? Eu a amo muito para magoá-la. Disse Toninho.
- Olha Toninho! As mulheres não são diferentes totalmente umas das outras. Elas gostam de ser cortejadas, queridas. Quem sabe a Rosa não se sente solitária, rejeitada? Ela deve estar fragilizada com a perda da mãe. Aproveite! Agora vá, pois logo, logo Manuel estará chegando e ele sobe direto, não quero que o encontre aqui.
Toninho se retira. Achou que o conselho de Sara talvez pudesse dar certo. Iria até a casa de Rosa. Falaria com ela. Pediu uma garrafa de conhaque e saiu.
Esperou no carro até ter certeza que Manuel não retornaria para casa. Já eram vinte e três horas. Resolveu tocar a campainha. Rosa desconfiada perguntou quem era. Toninho respondeu e ela abriu a porta.
- O que houve Toninho? Aconteceu alguma coisa com Patricinho? E Manuel?
- Não Rosa, não aconteceu nada. Estava passando e resolvi vir aqui, sei que está só. Sei que está triste por causa de dona Maria de Lourdes.
- Queria me desculpar por não ter conseguido convencer Patricinho a ir ao enterro. Sinto muito.
- Não se preocupe Toninho, você não tem culpa. Entre. Disse afastando a porta para que entrasse.
- Não quero incomodar.
- Você não incomoda, estou me sentindo sozinha, vamos conversar um pouco. Você está bem? Esteve bebendo?
Toninho estava realmente alto e tentava se controlar. Agradeceu e entrou.
Rosa falava, falava e Toninho ouvia. De repente ele não se conteve mais e avançou até ela  a abraçou e num impulso a beijou. Rosa tentava se soltar, mas não conseguia.
Toninho era muito forte e Rosa delicada não conseguiu se desvencilhar. Toninho rasgou-lhe as roupas e violentamente a possuiu ali mesmo no sofá. Com uma das mãos tapou sua boca não permitindo que ela gritasse. Era a força dele em conjunto com a força de Ferreira.
Rosa não teve como se defender.
Ao término daquele ato animal, como se acordando daquela fúria, Toninho sai de cima de Rosa. Olha para ela e apavorado contempla um rosto inundado de lágrimas.
Seu corpo tremia de horror e numa súplica por perdão, corre porta a fora e quase voando sai em seu carro e toma rumo desconhecido por Rosa.
Rosa permanece imóvel por longo tempo, se sente paralisada diante daquele acontecimento. Nunca imaginaria que Toninho pudesse ter uma atitude daquela. Estava arrasada.
Permaneceu no sofá, a roupa rasgada, suja, enojada em prantos. Onde estaria Manuel? Por que se ausentava e a expunha a tal perigo? Por que aconteceu isso com ela? Ficou assim até de madrugada, quando adquiriu forças, levantou-se e foi tomar banho. Esqueceria tudo que aconteceu, Manuel nunca saberia de nada. Ele seria capaz de matar o Toninho, não destruiria a vida do marido. Com certeza Toninho não teria coragem de voltar mais lá. Deitou-se, mas só conseguiu pegar no sono já amanhecendo. Manuel ainda não tinha chegado.
Toninho saiu em disparada estava desesperado, como pôde perder a cabeça daquela maneira? Que força o impelia a cometer aquele ato de covardia contra a Rosa, a sua Rosa? Ela o odiaria! Não era assim que ele queria, ele a amava a respeitava a venerava. O que foi fazer?
Ferreira gargalhava. Delirava diante daquela angústia, daquele sofrimento. Foi uma vingança deliciosa. Repetia no ouvido de Toninho, que sentia a cabeça explodir de dor, arrependimento, sofrimento.
Queria morrer. Nunca mais teria coragem de olhar no rosto de Rosa. Mas seus pensamentos se misturavam com as insinuações de Ferreira e trazia uma sensação de prazer, de gozo, de paixão. Lembrava-se da pele de Rosa, do seu cheiro, do calor que sentiu com seu corpo. Seus pensamentos se misturavam num misto de horror e prazer, amor e paixão, ódio e arrependimento.
Chegou em casa e se atirou no sofá e lá mesmo dormiu o sono dos algozes. Ferreira se deleitava e ao seu lado fincou presença, mas naquele instante ele sentiu algo estranho, uma sensação diferente. Era como se algo saísse dele, sutilmente, mas ele conseguia perceber.
Sofria uns arrepios que nunca tinha sentindo antes. Achou que estava cansado e resolveu descansar também. Desligou-se um pouco do seu escravo se afastando para um canto recostando a cabeça e adormeceu.



Capítulo VII

Manuel chegou em casa às seis horas. Há tempos não conseguia mais respeitar os horários. Pelo menos três vezes por semana ia se encontrar com Sara.
Desde que descobriu que aquela mulher era Sara não conseguiu mais se afastar dela. Ela mudara, estava mais fina, mais tratada, mais bonita. Como não a reconhecera de pronto? Nunca pensara encontrá-la novamente, mas depois que soube que ela era a mulher daquela noite não conseguiu mais largá-la. Ela nada lhe cobrava não se incomodava com Rosa, entendia até. Era como se Sara e Rosa se completassem. Uma doce, amorosa e delicada, outra feroz, amante e cúmplice. Estava no céu. A esposa, a amante. Só lhe faltava o filho tão esperado para que se sentisse totalmente realizado.
Manuel não entendia por que Sara continuava naquela vida. Por que, ao ficar viúva, simplesmente não passou a desfrutar dos bens que o marido lhe proporcionara. Isso o deixava pensativo. Uma mulher bonita, inteligente, arranjada. Será que a essência ferina, sensual que ela trazia consigo não pôde ser dominada mesmo estagiando num relacionamento dentro dos padrões? Pelo que lhe contou Sara, ela esteve casada neste período e muito bem casada. O que a fez despertar as vontades mundanas de tempos atrás?
Manuel lembra-se das promessas que fez a ela antes de conhecer Rosa, pensara mesmo em tirá-la daquela vida, até mesmo em se casar com ela. Agora tem dúvidas. Será que se ele a tivesse desposado ela se afastaria realmente e definitivamente daqueles prazeres e seria só dele?
- Ora Manuel! Tire isso da cabeça! Falou alto para si mesmo. Que importa? Casou-se com Rosa e é muito feliz. Se for assim que gosta de viver, então que seja! Sara será sempre a sua amante. Manuel se pegou surpreso com estes pensamentos. Gostava do casarão, não era um lugar imundo, pelo contrário, era agradável e sofisticado. Deixemos as coisas como estão, pensou.
Olhou Rosa dormindo não lhe pareceu serena. Teve pena dela ali sozinha à sua espera. Sentiu-se culpado. Deitou-se ao seu lado e beijou-lhe a face.
- Me perdoe Rosa! Falou baixinho. E fechou os olhos para tentar dormir um pouco.
Rosa não estava dormindo. Depois que deitou, mal conseguiu pegar no sono, ouviu quando Manuel chegou. Fingiu estar dormindo e ouviu quando o marido lhe pediu perdão. Por quê? Pensou. O que passava pela cabeça de Manuel para estar se sentindo assim? Em seus pensamentos também pediu perdão a ele por ocultar o acontecimento infeliz da noite passada. Esperou Manuel dormir levantou-se. Precisava falar com Margarida. Precisava desabafar e ela saberia ouvir e guardar o seu segredo. Fez o café e saiu apressada.
Chegando a casa de Margarida foi recebida com surpresa. Ainda não eram sete e meia da manhã e a amiga estranhou.
- O que houve amiga? Aconteceu alguma coisa com Manuel? Entre. Falou Margarida assustada.
- E o compadre? Perguntou Rosa.
- Já saiu, tinha um compromisso logo cedo e não queria se atrasar.
- Graças a Deus amiga. Preciso muito da sua ajuda, pois acho que vou enlouquecer. Falou Rosa quase gritando.
- Claro! Entre, vamos tomar um café e você me conta tudo.
Margarida pegou o café e levou para o escritório, lá elas teriam mais privacidade.
- Agora se acalme e me conte o que aconteceu.
 Rosa contou tudo com todos os detalhes e, à medida que Rosa ia relatando o acontecido, Margarida ia se ruborizando e, horrorizada, levantou-se e gritou;
- Eu não disse Rosa que aquele homem não prestava? Eu via algo nele que não me agradava. Sempre soube que ele te desejava, eu percebia os olhos de lobo dele em cima de você. Margarida falava descontroladamente, agitando as mãos não conseguindo nem se manter sentada.
Rosa ficou mais nervosa e começou a chorar. Margarida, percebendo a reação da amiga, se recompõe, senta ao lado dela e se desculpa pelo descontrole. Ficara sem chão ao ouvir tudo aquilo, mas pediu que Rosa se acalmasse e prometeu que ela também iria se controlar. Disse se esforçando para se acalmar enquanto lágrimas escorriam de seu rosto. Abraçou a amiga por um longo período e quando as duas já pareciam mais equilibradas voltaram ao assunto.
- O que pretende fazer? Perguntou Margarida.
- Nada. Afirmou Rosa.
- Não vou destruir meu casamento contando isso ao Manuel, poderia provocar uma tragédia. Tenho esperanças de que Toninho nunca mais nos procure.
- Margarida achou esta decisão um pouco perigosa e errada, afinal Rosa viveria uma mentira, mas ela sabia que Manuel poderia ter uma reação violenta e cometer uma desgraça.
Concordou então com a amiga e resolveram guardar aquele acontecimento só para elas.
Choraram juntas mais uma vez e mais tarde quando já não tinham mais condições para ficarem naquele estado, se abraçaram e se despediram com a promessa de irem à reunião espírita naquela noite, para tentarem uma resposta para aquilo tudo.
Quando Rosa se foi, Margarida foi para o quarto. Precisava deitar um pouco, se equilibrar.
Aquelas revelações foram muito fortes para ela. Como poderia acontecer uma coisa daquela? Como uma pessoa que se dizia amiga pode fazer uma covardia dessa?
Margarida era espírita, mas por mais que tentasse, não conseguia aceitar aquela situação. Pensava em Rosa e entristecia. Margarida não conseguia entender, mas sentia uma sensação estranha, um pressentimento que lhe gelava a barriga. Ficara mesmo muito impressionada com o sofrimento da amiga.
Rosa foi para casa, precisava fazer o almoço, saíra e não deixara um bilhete sequer para Manuel, ele deveria estar preocupado. Não se sentia bem. Algo estranho estava acontecendo com ela.   
Chegando em casa Rosa percebeu que Manuel já havia saído e suspirou, esperava que esta noite ele chegasse mais cedo.
Maria das Dores tudo observou. Não pôde evitar os acontecimentos, até tentou inspirar Rosa para que fosse descansar e dormir naquela horrível noite, mas Rosa estava inquieta, vibrava numa sintonia negativa, particularmente naquela noite. Rosa estava contrariada com as noitadas do marido, sabia que algo estava acontecendo, pois suas saídas e chegadas muitas vezes já amanhecendo, estavam ficando constantes e ela já não conseguia aceitar aquilo com a mesma calma de antes. Não sabia por que, mas seu coração não mais tinha a mesma tranquilidade e segurança que antes.
Maria das Dores, percebendo isso, tentou inspirá-la para pensamentos mais amenos, mas a chegada de Toninho na companhia de Ferreira abriu mais espaços para que Rosa ficasse queixosa e permitisse a entrada deles em sua casa, mesmo naquela hora da noite.
Maria das Dores nada pôde fazer para impedir ou amenizar o sofrimento de Rosa. Neste dia Maria das Dores recebeu a companhia de um emissário do alto, vozes do alto indicavam mudanças no futuro daqueles personagens.
Concessões foram estabelecidas em atendimento a pedidos de espíritos amorosos e, preocupados com o andamento dos acontecimentos, se faziam urgente.
A interferência de Ferreira obsedando Toninho precipitara consequências futuras gravíssimas, portanto algo importante deveria ser feito para que os prejuízos não fossem maiores.
Maria das Dores acaricia o Rosto de Rosa que preocupada com suas dores não percebe, depois se retira deixando um perfume no ar.


 Capítulo VIII

Toninho acorda já no final da tarde com o corpo todo moído. Estava numa ressaca que há muito tempo não tinha. Estava acostumado a beber, mas exagerou na noite passada.
Aos poucos sua mente vai trazendo as imagens dos acontecimentos na casa de Rosa. Toninho sente um frio na barriga.
- Será que Rosa vai contar para o Manuel? Pergunta em voz alta.
Corre para o banheiro e fica algum tempo embaixo do chuveiro deixando que a água caísse em sua cabeça que o faz sentir como se fosse explodir.
Ferreira o acompanha, um pouco cambaleante se sente mal e estranha o que está acontecendo com ele, pois geralmente depois de influenciar Toninho a fazer coisas ruins se sente forte, feliz. Mas naquele dia suas forças se apresentam frágeis e não consegue conter o desequilíbrio que o acomete. O que estará acontecendo? Pergunta-se.
Toninho resolve ir à noite conversar com Sara. Sabe que neste dia Manuel não deve ir lá, já que ontem esteve com ela. Sai para resolver algumas coisas, precisa falar com Patricinho sobre negócios. Quer vender a casa em que mora, não consegue ter mais prazer naquela casa enorme e vazia. Está triste e infeliz. Ferreira percebe seus sentimentos, mas não regozija como faz sempre. Algo mudou.
Quando chega ao casarão é recebido por Odete que acompanha Toninho até uma sala reservada. Ela percebeu a aflição e a impaciência dele e resolve não contrariá-lo. Pede que ele aguarde e vai chamar Sara. Informa a ela as condições em que Toninho chegou alertando para que Sara o receba discretamente.
- Do jeito que está é capaz de fazer um escândalo, diz Odete a Sara.
Sara concorda e vai conversar com Toninho. Ele lhe diz que está desesperado, que não aguenta mais esperar, que ela já conseguiu o que queria. Diz que foi falar com Rosa, mas que ela o rejeitou. Toninho resolve ocultar de Sara o que ocorreu.
Sara dissimula e pede um pouco mais de paciência, diz que Manuel está cada vez mais envolvido com ela e que a solidão de Rosa a aproximará dele. Toninho sabe que isso não vai acontecer e em desequilíbrio sai porta a fora a ameaçando.
Sara fica pensativa, precisa arrumar um jeito de afastar Manuel o máximo possível de casa, para que Rosa, não suportando a situação se separe dele, assim dando chance a Toninho. Resolve fingir que está doente para que Manuel vá lá hoje.
Chama Odete e pede que mande pelo motorista um bilhete a Manuel.
Manuel não vai ver Sara naquela noite.  Percebeu a tristeza de Rosa e resolve ficar com ela, já que na noite passada já havia dormido com Sara. Reconhece que não está sendo um bom marido e resolve levar Rosa para jantar naquela noite.
Rosa nunca cobrava nada dele, era uma mulher maravilhosa, mas por que não lhe dava um filho? Sente que Rosa está infeliz, solitária e desde que a mãe morreu, seus dias estavam mais ociosos e inexpressivos. Nunca permitira que Rosa o ajudasse nos negócios, sempre achou que lugar de esposa é em casa cuidando de tudo. Rosa nunca quis serviçais e fazia tudo sozinha. Mas um filho traria alegria, preencheria seus dias.
Resolveu que apesar de amar Sara, evitaria estar muito tempo longe de casa. Amava Rosa também e não queria que ela sofresse.
Os dias se passaram e uma noite, após retornar do casarão, encontrou Rosa na sala à sua espera.
- Aconteceu alguma coisa meu amor? Perguntou a Rosa.
- Não pude ir dormir antes de sua chegada. Precisava falar com você. Diz Rosa com lágrimas nos olhos.
Manuel se espanta, fica apreensivo.
- O que houve de tão urgente? Pergunta nervoso.
Desde que tomara a decisão de não mais deixar Rosa muito solitária que Manuel não chegava mais ao amanhecer em casa. Sara protestava, fazia charme e reivindicava sua companhia, mas decidira, não mais dormiria fora de casa, portanto ainda não era madrugada quando chegou em casa.
- Estou grávida! Disse Rosa de chofre.
- O que você disse? Perguntou Manuel.
- Nós vamos ter um bebê. Falou Rosa quase gritando.
Manuel deu um salto e abraçou Rosa quase caindo de tanta felicidade.
- Quando soube? Por que não me disse que estava desconfiada? Não devia ter ocultado isso de mim. Manuel falava sem parar rindo e chorando ao mesmo tempo. Rosa, feliz da vida, pede calma a ele e segurando sua mão senta com ele no sofá. Ficam em silêncio com as expressões abobalhadas no rosto de quem encontrou a felicidade que estava escondida.
Beijaram-se longamente e Manuel declarou-lhe amor e demonstrando agradecimento, jurou-lhe amor eterno. Era o homem mais feliz do mundo graças a ela. Foram deitar-se e sonhar.
Assim, os dias de Rosa e Manuel se desenhavam num quadro de felicidade, planejamento e espera.
Os dias se passavam entre exames, médicos e lojas.
Rosa não mais ficou triste e não mais ficou só. Manuel a acompanhava em tudo fazia questão de escolher junto com ela cada roupinha, cada detalhe do quarto do bebê. Ficavam horas imaginando como seria o rostinho dele e o nome que eles dariam a ele. Ele, pois Manuel não falava em outra coisa.
- Seria menino com certeza! Dizia sem qualquer chance de protestos. Rosa ria, mas sabia que se fosse menina ele a amaria do mesmo jeito.
Sara enlouquecia de ciúmes e raiva. Até tentou engravidar de Manuel, mas nada, a cada mês quando sentia as regras esbravejava de ódio.
- O que Rosa fez para conseguir engravidar? Apesar de anos sem conseguir, me aparece com esse filho. Gritava para Odete, que escutava calada.
Toninho frequentava o casarão quase que diariamente. Era cúmplice de Sara naquele desejo, desejo de destruir aquela felicidade que o amargurava. Não tinha a mesma força de antes. Estava derrotado emocionalmente, perdera Rosa para sempre. Mas gostava de ver a agonia de Sara, afinal foi ela quem trouxe a tona novamente esse desejo por Rosa. Desde que Rosa casara, ele se recolhera em seu mundo. Ela ao voltar, reavivou o desejo em seu peito.
Toninho não entendia por que se sentia fraco. Não era por causa desse desejo renovado, mas porque Ferreira não mais o influenciava agressivamente. Estava enfraquecido também. Não entendia o que lhe acontecia, mas não tinha mais a força e a influência de antes sobre Toninho. Sentia-se sonolento e passava a maior parte do tempo em repouso. Mas ainda continuava ali.
Rosa foi ao encontro de Margarida na noite do dia seguinte ao triste acontecimento em que Toninho foi a sua casa, como prometera. Estava muito nervosa, pois não tinha certeza se Manuel viria mais cedo para casa ou não. Mas foi mesmo assim.
Margarida já havia se comunicado com a pessoa que presidia as sessões e então foi feita uma sessão especial naquele dia.
Realmente Manuel chegou cedo em casa, mas não encontrou Rosa. Mesmo assim não saiu, resolveu aguardá-la. Rosa deixara um bilhete dizendo que ia se encontrar com Margarida e elas iriam a uma sessão espírita. Manuel não compactuava da escolha de Rosa, mas não a proibia, afinal confiava nela e em margarida. Ficou aguardando a sua volta. Acabou dormindo no sofá.
Rosa e Margarida chegam e logo depois começam os trabalhos da noite.
Em volta da mesa, a dirigente lê uma parte do evangelho e profere uma prece pedindo aos bons espíritos que se for do merecimento daquela irmã ali presente que tragam algum esclarecimento. A médium mais antiga entra em transe e começa a falar. 
- Queridos irmãos, é uma felicidade para nós essa oportunidade de poder, nesse momento sublime, trazer em humildes palavras, esclarecimentos aos corações amargurados. Que Deus seja louvado e que todos possam em sintonia de amor receber sua sublime luz. Era a voz de Maria das Dores que se fazia ouvir por todos ali presentes.
A dirigente então com calma, saúda a presença da sublime entidade agradecendo sua caridosa disposição.
- Somos todos vítimas de nossos próprios desejos, atos e orgulhos. Falou com calma e delicadeza Maria das Dores. Nossas vidas estão entrelaçadas por séculos de envolvimentos onde proliferou o materialismo abafando o sublime espiritual. Hoje se encontra aqui uma irmã querida que está angustiada em suas dores. Tem em suas mãos a oportunidade da redenção e a responsabilidade sobre a vida que virá.
Ajudando-nos uns aos outros, estamos cumprindo parte de nosso dever perante o pai. Devemos aceitar as provações não as tornando expiações. Um futuro de muitas lágrimas nos aguarda, mas a força buscada nos braços de Jesus nos ajuda na caminhada. Estaremos sempre ao lado dos justos e procuraremos apoiar, sempre respeitando o livre arbítrio, todos os que sofrem em suas imaturidades espirituais. Fiquem em paz irmãos e sigam com fé.
A dirigente agradece mais uma vez a presença amiga e dá por encerrada a sessão daquela noite.
Margarida e Rosa voltam para casa em silêncio. A mensagem do espírito amigo trará para cada um a interpretação necessária às necessidades individuais.
A experiência de um tornando aprendizagem para todos.  
Naquela noite Rosa não jantou fora com Manuel como ele tinha planejado, mas dali em diante seus dias não serão solitários, presente conquistado para um futuro que lhe reserva a condição de força e abnegação.       


Capítulo IX

Manuel não se aguenta de tanto contentamento.
Seu filho vai nascer e aquele dia era o dia mais feliz de toda a sua vida. Seu herdeiro! É claro que seria um menino, depois de anos de espera e da dificuldade para vir essa criança, Deus só poderia lhe dar um menino. Dizia para si mesmo. Será chamado de Pedro, como São Pedro o apóstolo de Jesus e ele herdará tudo que conseguiu com todo o suor de seu rosto, tudo para aquele filho, o filho querido, esperado. Pensava e as lágrimas lhe escorriam pelo rosto, não podia de tanta emoção.
Não foi trabalhar, queria estar lá para receber seu menino.
Rosa começou a ter as dores ainda de madrugada. Manuel chamou o médico da família e este pediu que a levasse para a maternidade, estava quase na hora e provavelmente o bebê nasceria pela manhã. Disse o médico acalmando Manuel.
Rosa estava feliz, finalmente iria ter o tão esperado filho, aquele que lhe faria companhia nos dias de solidão, seu amigo, o que traria alegrias e que uniria a família. Manuel sonhava com um menino, mas para ela tanto fazia, menino ou menina, amaria igualmente.
Rosa sabia, tinha certeza que aquele filho era de Toninho. Sentiu-se diferente, emotiva, pensava que fosse por causa do trauma por tudo que aconteceu, mas seus seios começaram a crescer e um enjôo tomou conta de seus dias. As regras pararam. Engravidara. Concluiu então que o problema estava com Manuel e não com ela. Mas, nada disse. Esperou até que tivesse certeza e então deu a notícia a Manuel. Ele ficou radiante e daquele dia em diante mudou completamente seu comportamento. Já não chegava em casa amanhecendo nem de madrugada. Dedicava mil cuidados a ela e fazia-lhe todos os mimos.
A crueldade de Toninho trouxera felicidade e harmonia para o seu lar. Amenizou até o sentimento de angústia e raiva que sentia por ele e às vezes se pegava agradecendo por tudo que passou. Manuel era outro homem! Pensava feliz.
E realmente era, pois cada vez ia menos ver Sara, dava mil desculpas. Não comentou nada com ela sobre a gravidez de Rosa. Esperaria a criança nascer para contar-lhe. Ele temia alguma reação negativa dela.
Pensava que seria melhor só lhe dizer depois, assim ia se afastando dela. Queria mesmo terminar tudo, se dedicar totalmente à família, ele ia precisar de todo tempo disponível para seu filho, queria aproveitar a infância dele, acompanhar seu crescimento, seus estudos. Queria participar de tudo que fosse necessário ao bem estar dele. Não caberia mais em sua vida o relacionamento com Sara. Ele a amava, mas amava mais a sua família. Ela era prazer, sexo, diversão. A família era solidez, tranquilidade, futuro, continuação da vida. Teria que se afastar de Sara.
Manuel pensava que tinha o comando, mas estava enganado. Sara já sabia da gravidez de Rosa. Soubera por Toninho, que vingativo, contou-lhe para que soubesse que perdera também.
Toninho nunca mais voltou na casa de Manuel e como Patricinho raramente ia visitá-los, não precisava de muitas desculpas para recusar um convite dele.
Quando soube da gravidez de Rosa, ela já estava com cinco meses. Não lhe passou pela cabeça a possibilidade de ser o seu filho. Ficou arrasado e  inconformado com a derrota e sentiu o seu sangue ferver de ciúmes e inveja de Manuel.
Sara não disse a Manuel que sabia, pois não teria como explicar a notícia. Silenciou-se. Sentiu as ausências dele, suas visitas escassas, a pouca atenção. Sentiu o relacionamento cada vez mais esfriar e o sexo já não era tão vibrante como antes. Tudo fez para chamar a atenção de Manuel para ela.
Promovia festas, inventava doenças, chorava pedindo mais atenção, mas Manuel cada vez se afastava mais.
E Toninho ria, provocava, insinuava a derrota. Ele se arrependera de ter se aproveitado de Rosa, mas não se conformava com a impossibilidade de ter uma chance, pois destruira com aquele ato a confiança que Rosa tinha em sua amizade. Tudo por causa de Sara que o provocara naquele dia o instigando para procurá-la. Foi ideia dela e o fato de Manuel se afastar de Sara o deixava satisfeito. “olho por olho, dente por dente” dizia para si mesmo enquanto ouvia as lamentações dela, sobre as ausências de Manuel.
Toninho ainda era o mesmo, malandro, aproveitador, corrupto e violento, mas já não sofria a interferência de Ferreira.
Quando Toninho violentou Rosa sob a influência de Ferreira, selou o destino de ambos. Ferreira passaria por um processo de reencarnação compulsória.
Foi a maneira que a equipe responsável pela proteção daquele ser teve como solução para oportunizar os resgates urgentes ainda naquele momento reencarnatório dos seres envolvidos.
E aos poucos Ferreira foi entrando em sono cada vez mais profundo até o momento de nascer novamente, nos braços de Rosa, sob a proteção de Manuel e as possíveis consequências dos atos, tanto de suas vítimas, como de outros envolvidos diretamente neste processo.
São os nós que precisam ser desatados, são as lágrimas que precisam ser enxugadas, são as cicatrizes que precisam ser curadas. Mas o livre arbítrio vigora concreto e respeitado. Nas exceções que favorecem tais aparos de arestas é dada  partida para aqueles que conseguem seguir adiante ou não.  
Finalmente ouve-se um choro, um choro forte. Manuel estava no corredor em companhia de Margarida, andava de um lado para o outro, nervoso e quando ouviu aqueles berros não conseguiu conter a emoção chorava que nem uma criança.
Margarida o abraçou emocionada. Ela sabia de toda a história, pois era íntima de Rosa e seu coração se encheu de ternura por aquele homem ali tão frágil diante da possibilidade da realização de um sonho.
Embora estranhasse a reação de Rosa ao esconder de Manuel os acontecimentos, naquele momento pôde perceber a grandeza daquela mulher que fez da tragédia a sublime realização e da vida que chegava uma razão para encontrar a harmonia e a felicidade em seu casamento.
É a janela que o Pai abre quando vemos a porta  se fechar.
Encontrar a luz depois da dor, não fazendo com que ela se torne um sofrimento e uma destruição, é dádiva de almas cristalinas que sabem o poder do perdão, do amor e da fé.
Rosa sabia que não era certo destruir seu marido com ódio, com vingança e com fraquezas. Se aconteceu tudo aquilo com ela, era porque suas dívidas ainda não estavam quitadas e, inconscientemente, divisava seu compromisso juntamente com Manuel para com aquela criança.
Neste instante veio a enfermeira dar a notícia. Era um menino. Manuel correu para ver Rosa e o tão sonhado filho, estava radiante diante daquela criaturinha.
Finalmente minha vida valerá a pena, pensava e entre beijos e carícias, declarava seu amor a Rosa que entre lágrimas agradecia a Deus tamanha felicidade.
Margarida sorria ao ver a cena e num canto do quarto Maria das Dores apreciava a cena se permitindo observar naquele espírito recém-encarnado um temor inconsciente de um futuro incerto. Herança do passado que aquele ser minúsculo trazia e que era colocada nas mãos daqueles seres que transbordavam felicidade.
Três dias depois voltaram para casa felizes com o herdeiro no colo.
Sara não se conformava, pois já haviam passados seis meses após o nascimento da criança e Manuel não mais tinha voltado lá. No início ela até entendia, o bebê era recém-nascido, precisava dele, mas agora? O que estava acontecendo? Esbravejava irritada.
Mandou chamar Toninho imediatamente, precisava dar um jeito naquilo. Não iria perder Manuel por nada.
Toninho já parecia até conformado. Rosa, agora mãe, nada poderia fazer para que conquistasse o coração dela. Principalmente depois daquela noite.
Depois de tudo que houve Toninho se contorcia em remorso. Passou a beber mais do que o costume e só não colocou os negócios a perder porque Patricinho era muito esperto e competente, passou a se inteirar mais nos negócios e praticamente tomou conta de tudo.
Mas Sara não queria se conformar e queria agir. Tenta convencer Toninho a ajudá-la, dando esperanças ao que parecia impossível. Ela fica com Manuel e ele com Rosa. Mas Toninho disfarça e não aceita.
Sara resolve esperar mais um pouco. Pede a um segurança que leve um bilhete a Manuel. E fica aguardando a resposta.

“Manuel, estou desesperada de saudades. Sei que agora é papai, mas não tem problema. Entendo que está com menos tempo, mas não me enlouquece de saudades, te aguardo. Beijos Sara.”
Manuel lê o bilhete e manda dizer que no final da tarde irá visitá-la. Ele já está decidido. Vai romper com Sara, não poderá mais ficar nesta vida dupla já que agora a sua família precisa dele e nada desse mundo o separará de seu filho. Decide ir falar com Sara naquele dia.
Resolve terminar mais cedo suas providências e no final da tarde vai ao encontro de Sara.
Rosa nunca fora tão feliz. Estava realizada! Decorara o quarto lindamente. Pendurara no berço um pêndulo com vários cristais que suavemente provoca um som no balançar do vento. Pedro adorava, quando ela, olhando para ele no berço sorrindo, balançava os cristais. Ele levantava as mãozinhas como que querendo pegar aquele “barulhinho”.
Manuel se transformara. Era todo dedicado à família e não se cansava de babar o rebento. Eram felizes, finalmente.
Manuel aproveita essa noite e rompe o relacionamento com Sara. Ela se desespera, suplica, diz que nada cobraria que o amava. Mas nada fez com que Manuel voltasse atrás. Não queria mais. Declarou amá-la, mas esse amor era fruto da sensualidade e ele queria calma, queria a esposa e o filho. Pediu que nunca mais o procurasse e saiu.
Sara, naquela noite, não desceu de seu quarto. Não conseguia parar de chorar, via todas as tentativas de ter Manuel ao seu lado fracassadas. Estava desesperada.
Maria das Dores assistia a tudo, mas não pôde fazer nada para inspirar Sara, ela estava muito revoltada e sintonizava esferas negras, facilitando a atração daqueles espíritos que há muito frequentavam o casarão.
Espíritos que ainda se encontravam presos àquele ambiente de sensualidade, vícios e mentiras. Acompanhavam aqueles frequentadores sugando-lhes os prazeres mundanos e transitórios daquele ambiente.
Naquela hora Sara estava cercada deles que deliravam com seu desespero e se aproveitavam de sua frágil energia. Sua aura estava opaca e debilitada.
Maria das Dores então se recolhe e aguarda um momento propício para inspirar Sara a se acalmar e a se resignar da perda iminente.
Mas Sara não se conforma, sua mente revoltada traça planos. Seu ódio é transferido para aquele ser que nasceu proveniente do amor de Manuel e Rosa.
Sara ignora totalmente o ocorrido entre Toninho e Rosa. Nem Toninho sabe por que omitiu essa informação dela. Sara pensa que Pedro é fruto de Manuel. Está cega de ciúmes, inveja e ódio.
Passa a noite toda arquitetando um plano para separar Manuel de Rosa, mas só consegue pensar na criança. Ela é a culpada, ela afastou seu amor dali.
Descobre que odeia aquele menino. E decide que só tirando ele deles é que terá chance de ter Manuel de volta. Já amanhece quando finalmente consegue dormir.
Neste instante Maria das Dores, numa súplica aos superiores, consegue ter mais um encontro com Sara. Tentará mostrar-lhe o quanto estará dificultando sua caminhada se persistir neste desejo de vingança e crueldade. Mas Sara não consegue perceber sua presença, se recusa a qualquer interferência e se mantém junto às entidades obscuras que alimentam sua vingança.
É o livre arbítrio que se faz presente nas escolhas de cada um.
Maria das Dores então se retira e, a conselho de seus superiores, não interferirá mais junto a Sara.
Quando Sara acorda, a tarde já se anunciava. Sua cabeça dói, seu corpo está pesado e quase não consegue se levantar.
Toma um banho, se arruma, coloca seus óculos escuros e pela primeira vez vai pessoalmente ao encontro de Toninho em sua residência.
Toninho toma um susto. O que terá acontecido para que Sara se despenque de seu castelo e venha a sua casa? Manda que ela entre.
- Que horror Toninho, sua casa é um pardieiro. Diz Sara horrorizada com a bagunça.
- Diz logo a que veio, dormi tarde e ainda não me encontro em condição de nem raciocinar. Diz Toninho fechando a porta.
- Temos que dar um jeito de tirar aquela criança dos dois, só assim teremos alguma chance de conquistá-los de vez. Fala Sara de uma só vez.
Desde que Ferreira foi afastado de Toninho, compelido à reencarnação, que Toninho perdera a força que o impulsionava aos atos de valentia, audácia e riscos. Estava fraco e seus desejos já não eram mais audaciosos com relação à Rosa. Voltara a pensar nela com respeito e carinho e sua consciência há muito o chamava ao arrependimento.
Não desejava se vingar e, mesmo com a promessa de Sara em empurrar Rosa para os seus braços mediante ao caos que a ausência da criança criará entre ela e Manuel, Toninho não se abala, não se deixa iludir por essa promessa, pois ao contrário de Sara, ele sabe que essa possibilidade nunca se anunciará.
Resolveu tirar esse desejo definitivamente de sua mente.
E assim recusa qualquer ajuda a Sara. Principalmente que a derrota dela, perdendo Manuel, o satisfaz e assim se sente vingado por tudo que Sara o instigou a fazer.
Sara se retira bufando de raiva e jura que se vingará dele também. Toninho fecha a porta e volta a dormir. Há muito que sua vida perdeu o sentido e Patricinho agora é quem gerencia todo o seu negócio.
Toninho não sabe, mas apesar de suas dívidas na roda da vida serem altas, a sua escolha fará com que parte dessa dívida se faça resgatada, pois não se comprometendo com o destino dessa criatura que ainda se encontra em tenra idade, mas que trás em seu espírito marcas profundas, fatalmente interromperá o círculo de ódio e vingança. Mas muito ainda terá que amargar para que esse processo se conclua.
Toninho, momentaneamente cego das verdades, um dia se deparará com o fruto de seu ato vil com a sua amada Rosa.
Seis meses se passaram e os preparativos para o aniversário de Pedro vão a todo vapor.
Pedro completará um aninho e sua festinha será comemorada com pompa e muita alegria.
Rosa se esmerou nos preparativos. Escolheu o circo como tema para a decoração e Manuel cuidou pessoalmente da confecção dos docinhos com carinha de palhaço e em forma de bichinhos e o bolo confeitado com a figura de um circo, tudo feito em sua confeitaria, a mais nova que abriu, em laranjeiras.
Rosa fez questão de que a festa fosse em sua casa, afinal tinham um lindo jardim, onde comportaria todos os convidados.
Manuel contratou dois palhaços para divertir a garotada. Estava tudo maravilhoso. Patricinho fez questão de que Toninho fosse e apesar de resistir muito, foi convencido por ele.
Ao chegar à festa, foi recebido por Manuel com ares de surpresa, afinal Toninho ainda não tinha ido conhecer Pedro.
Rosa, disfarçando a surpresa, cumprimentou Toninho num leve balançar de cabeça. Seu coração estava muito feliz para se deixar abalar pela presença dele, afinal seu filho era toda a sua felicidade e querendo ou não fora ele quem proporcionou isso a eles. Não sentia mágoa nem sentimento nenhum ruim para com ele. Na verdade Rosa tinha pena de Toninho, pois sabia por Patricinho que a vida dele era solitária e infeliz e em seu íntimo sabia que a alegria que Pedro trouxe para ela e Manuel, nunca seria desfrutada por ele, seu verdadeiro pai.
Esse segredo ela levaria para além-vida, mas também tinha consciência de que um dia teria que prestar conta dessa decisão que no fundo era egoísta da parte dela. Desviou o pensamento e continuou com seus afazeres.
Margarida ficou horrorizada com a audácia de Toninho em ir aquela festa, mas se manteve firme e decidiu que mesmo que tivesse que passar a festa toda se desviando dele, evitaria qualquer possibilidade de diálogo entre eles.
Tudo estava lindo e tudo foi maravilhoso. Manuel não se continha de orgulho. Pedro era uma criança linda, lembrava Rosa. Era esperto e além de pê pê que repetia constantemente, falara papá, fazendo Manuel quase estourar de felicidade. Tudo estava perfeito demais.
A festa foi um sucesso e Rosa e Manuel, depois das despedidas, levaram Pedro para o quarto dele e desceram para organizar um pouco a bagunça.
Duas horas depois, resolveram subir para descansar, deixariam o restante da arrumação para o dia seguinte, Rosa tinha providenciado uma faxineira, conhecida da empregada de Margarida para ajudá-la na limpeza.
Mesmo com Pedro, nunca quis empregados.
Enquanto Rosa foi tomar um banho, Manuel foi ao quarto de Pedro para lhe dar um beijo, sempre fazia isso.
Quando entrou no quarto e se aproximou do berço, não acreditou no que viu. O berço estava vazio. Saiu correndo chamando Rosa que saiu do banheiro assustada. Pedro tinha sumido.

 Capítulo X

Sara retorna para o casarão.
Está muito afetada com tudo que lhe ocorreu. Não consegue assimilar nem aceitar que perdeu Manuel.
Tanta espera, tanta coisa deixou para trás para poder rever seu amor. Por que ela estava fadada a não ter ele para ela? O que Rosa tinha que ela não tinha? Afinal era bonita, elegante e rica.
Sua casa era um sucesso e neste tempo duplicara seu capital.
Não existia na cidade do Rio de Janeiro casa como a dela, era frequentada pelos mais ricos, nobres e bem sucedidos homens que vinham de todo lugar do Brasil só para conhecer o casarão e madame Sarita. Cantores e cantoras famosos faziam shows e disputavam uma oportunidade para se apresentarem lá.
O casarão era respeitado até mesmo pelas autoridades militares, nunca sofrendo represálias, nem ameaças de fechar.
Sara fez um retrospecto de sua vida e sentiu saudades de Alberto. Foi amada, respeitada, mimada e idolatrada por ele. Mas, nunca esqueceu Manuel, nunca perdeu o desejo por ele. Ele estraçalhou seu coração, menosprezou seu sentimento. Ela era cortejada por muitos, mas seu coração era dele.
Agora tinha ódio de todos que contribuíram para que ele se afastasse dela. Não tinha raiva dele, pelo contrário, entendia o amor que ele tinha pelo filho. Ela até estava disposta a criá-lo junto com ele, mas se não podia, então teria que dar um jeito nisso, e a única forma de Manuel voltar para ela seria tirando o menino de sua vida, afastando-o do filho.
Pensou em Toninho e julgou-o um fraco. Aceitou perder e não queria mais lutar. Recusou-se a ajudá-la, mas não tinha problema, faria tudo sozinha.
Faria tudo com calma, bem planejado. Sabia da vida de suas meninas e a situação de pobreza em que a maioria vivia antes de ir trabalhar para ela.
Chamou uma delas e ofereceu ajudar uma irmã casada que vivia em penúria. O marido bebia e já tinham três filhos, mas por um bom dinheiro concordariam em criar mais uma criança. Com certeza concordariam com seu plano. Estava resolvido! Pensou. Desde que eles nunca retornassem com a criança, os sustentariam pelo resto da vida. Assim, pensava Sara, Manuel com certeza não sustentaria o casamento com Rosa e voltaria para seus braços. Ela daria todo apoio a ele. Sara estava certa disso e sorria de felicidade.
Durante os seis meses que se seguiram todo o plano foi elaborado, articulado e visto e revisto em seus mínimos detalhes. Ficou decidido então que no dia do aniversário de um ano do menino se faria o rapto.
Neste meio tempo, Sara trouxe a família escolhida para a cidade e a instalou em uma casa no subúrbio.
Articulou para que a mulher trabalhasse em uma das padarias de Manuel, dessa forma saberia de tudo que acontecia e ela, mostrando-se prestativa, conseguiria ajudar na festa de aniversário, assim facilitando a entrada na casa e a retirada da criança. Sara não perdia um detalhe. A mulher usava nome e endereço falsos, nunca seriam descobertos. Imaginava.
Sara providenciou um carro de aluguel e um de seus seguranças os levaria para um sítio que comprara na cidade do interior, onde residiriam. E assim, foi realizado o plano mais sórdido e cruel que alguém pode arquitetar.
Sara não podia nem pensar na reação de Manuel e Rosa, seus olhos ficavam vidrados na cena imaginada, não conseguia raciocinar na crueldade em que se metia, seus olhos brilhavam de satisfação ao pensar no retorno de Manuel, cabisbaixo, frágil. Estava doente, envenenada com seu ciúme. Ficava horas pensando, arquitetando aquela cena imaginária e enfatizava em voz alta para si mesma. - Tudo dará certo!
Odete observava o comportamento de Sara com preocupação, percebia seu desinteresse pelos negócios do casarão e volta e meia se deparava com ela falando sozinha num misto de alucinação e psicose. Já não dormia mais como antes e a ausência de Manuel a fazia delirar nas madrugadas a chamar pelo seu nome.
Odete não sabia de seus planos. Sara não lhe confiou nem partilhou o que arquitetara com ela, pois sabia que Odete seria sumariamente contra.
A notícia do sequestro de Pedro soou feito uma bomba em toda a cidade.
Manuel era um comerciante conhecido e respeitado e embora conservasse seu jeito simples juntamente com Rosa, era muito rico. Mobilizou a imprensa, a polícia, as autoridades e a população.
Era um caso horrível, envolvia uma criança e todos se sensibilizavam com o casal. A vida de Manuel e Rosa se transformou num interesse geral, sua privacidade foi totalmente exposta. O mundo caiu.
Rosa entrou em profunda depressão e precisou de sérios cuidados médicos. Manuel nunca mais foi o mesmo. Sua casa vivia constantemente cheia de pessoas, curiosos e aproveitadores. Vários alarmes falsos faziam com que ele se desprendesse para vários lugares.
Manuel colocou todo o seu patrimônio à disposição da procura pelo filho.
As buscas oficiais levaram um ano, até que a polícia deu por encerrada. Manuel contratou detetives para procurar pistas. Nunca desistiu de achar seu filho amado.
Nunca mais procurou por Sara. Ela o procurou, oferecendo ajuda, apoio, seus braços, mas ele recusou.
Margarida esteve todo o tempo ao lado de Rosa que precisou ser internada com depressão e fraqueza.
Manuel começou a beber, bebia para esquecer. Vivia isolado em sua casa e só saia para visitar Rosa.
Toninho procurou se manter afastado e desde que Sara foi vê-lo, decidiu mudar o rumo de sua vida. Vendeu todas as suas propriedades e passou os negócios para Patricinho que aos poucos foi legalizando e humanizando os interesses. Fez um tratamento para se desintoxicar, pois ultimamente não conseguia ficar sem beber.
Toninho não tinha esposa nem filhos e gostava sinceramente de Patricinho que com muito custo aceitou realizar o seu desejo de apenas ficar com um pequeno apartamento e uma mesada.
Patricinho não entendia essa mudança de vida de Toninho, não suspeitava dos últimos acontecimentos que envolveram Toninho, Sara, Rosa e Manuel e achava até que seu protetor estava ficando doido. Mas respeitou seu desejo.
Toninho, ao ficar livre da obsessão de Ferreira, aos poucos foi trazendo à tona seu lado humano, seu coração se acendeu novamente no desejo de ser feliz, de ser “normal” como qualquer pai de família, mas o remorso o remoia e então se isolou e passou a vida de maneira pacata e longe de falcatruas, jogos, prostitutas e golpes. Já não era mais o mesmo.
Nesse tempo, Toninho ouviu falar de um homem que se dizia médium e que via e falava com os mortos. Tinha psicografado um livro muito polêmico com poemas de poetas famosos. Interessou-se.
Toninho não tinha muita cultura, aprendera a ler e escrever por conta de muito esforço, não frequentava as aulas como seu amigo Manuel, preferia os golpes e as farras, mas aprendeu com a vida e gostava de coisas boas, luxo, livros, artes e poesias.
Adquiriu aquele livro e se encantou com a personalidade do autor que não se dizia autor.
Passou a devorar tudo que conseguia sobre a Doutrina dos espíritos como lhe informaram. E passou a frequentar lugares onde se reuniam para estudar.
Toninho sofria muito, pois em seu íntimo sabia que Sara era a responsável por aquele sequestro e sofria por Rosa, mas se mantinha afastado, embora sempre informado por Patricinho que, a seu pedido, disponibilizou fundos para ajudar nas buscas do sobrinho e no tratamento de Rosa.
Um dia foi procurar Sara, mas ela se recusou a atendê-lo, mandou dizer que ele a traíra e que nunca mais a procurasse, mas com muita insistência, convenceu Odete a levá-lo ao quarto de Sara, então, Toninho pôde ver, nos olhos dela a verdade, mas também a loucura em que ela se encontrava.
Sabia que Manuel nunca mais a procurou e percebeu o amor equivocado de Sara por Manuel, mas também se convenceu do amor puro de Manuel por Rosa. Saiu envergonhado de um dia ter feito parte daquela trama.
Cinco anos se passaram.
Manuel adoeceu gravemente, pois a bebida, as noites mal dormidas e o sentimento de culpa pelo rapto de Pedro debilitaram seu corpo e seu pulmão não resistiu.
A doença de Manuel soou como um milagre para Rosa que despertou da letargia que se mantinha. Sua doença despertou Rosa para a vida, ela precisava ajudá-lo. E com o apoio de Margarida, da luz de Maria das Dores e do amor que tinha por Manuel e Pedro, Rosa se recuperou.
Mas apesar de todo esforço médico e da dedicação de Rosa, três anos depois Manuel desencarnou, levando a tristeza que sentia com a desesperança em encontrar seu filho amado e na desilusão de acumular uma riqueza sem a riqueza principal que era o amor de Pedro.
Manuel foi amparado por Maria das Dores que o encaminhou para um tratamento em uma colônia próxima.
Manuel ficaria em sono pelos próximos dez anos, tempo necessário para que conseguisse assimilar sua condição e se preparar para receber seus queridos.
Rosa ficou só. Perdeu seu filho querido, perdeu seu amado marido.
Não encontrou as explicações para o seu destino tão dolorido na Doutrina dos espíritos, mas encontrou consolo na esperança de um dia encontrar aqueles que amava tanto. A certeza da vida futura lhe deu esperança e lhe trouxe resignação.
Sara, após perceber que Manuel não voltaria, se trancou em seu quarto no casarão e jamais saiu de lá, tornou-se uma figura misteriosa que aguçava a curiosidade de quem frequentava o casarão.
Odete passou a cuidar de todo o seu patrimônio.
E em 1962, dez anos depois da morte de Manuel, o casarão fechou suas portas para sempre, mas Odete continuou fiel àquela que aprendeu a compreender mesmo não entendendo tamanho amor que, mantido de forma equivocado, congelara o coração daquela que tudo teve para ser feliz.
Quando Sara entrou na mansão do Dr. Alberto pela primeira vez, sorrindo e mostrando aquelas covinhas, algo dentro dela despertou-lhe admiração e carinho. Odete ajudou Sara em seus planos e nunca pensara que seu fim seria este.
Agora, só restavam elas e o sofrimento de Sara cortava seu coração.
Sara enlouqueceu quando soube da morte de Manuel e quase morreu numa tentativa de suicídio. Desde então, Odete virou seu cão de guarda vigiando-a dia e noite.
Mas cada vez mais debilitada, dois anos depois Sara desencarnou aos cinquenta e seis anos de idade, deixando Odete sua fiel amiga descansar finalmente no dever cumprido.
Odete vendeu o casarão e retornou para a Bahia onde desejava finalizar a sua vida, mas antes de viajar, Odete colocou no correio uma carta. Era o último desejo de Sara. Uma carta para Rosa.


Capítulo XI

Dois anos depois do desaparecimento de Pedro, Sara começa a perder as esperanças, pois neste tempo todo Manuel não a procurou nenhuma vez.
Mesmo depois de ela o procurar oferecendo apoio, Manuel não lhe demonstrou interesse.
Num ato de ira, Sara resolve que se o desaparecimento do menino não trouxe Manuel de volta, então não mais a interessava e a partir daquele momento não mais enviou dinheiro para a família que estava com Pedro.
Pedro agora estava com três anos. Nenhum carinho tinha daquela família, era deixado horas num canto e muitas vezes só o alimentavam uma vez por dia. O casal não gostava de trabalhar e gastava todo o dinheiro que Sara enviava com bebidas e farras. Os próprios filhos eram criados largados, sujos e doentes.
Pedro era magro e debilitado, mas nunca chorava, ficava quieto naquele canto brincando com pedrinhas que os “irmãos” traziam para ele. Não o agrediam, mas não lhe davam carinho nem atenção. Nem nome tinha. Pedro nunca falou, só pronunciava pê pê, pê pê. O casal até achava que ele era bobo, idiota.
Quando perceberam que Sara não mais enviava nenhum dinheiro, decidiram abandonar aquela criança e quando um circo passou pela cidade vizinha e armava para ir embora, acharam a solução para se livrarem daquele obstáculo em suas vidas.
- Já tinham deixado o filho menor num orfanato, não ficariam com aquele menino. Disse o homem para a mulher. E ela concordou.
Assim, Pedro foi deixado de madrugada na porta de um  treiler do circo.
Marta encontrou aquele menino em sua porta e não havendo nenhuma procura por ele, adotou aquela criança que passou a se chamar Pêpe e a preencher seus dias solitários.
Após a morte de Manuel, Rosa se vestiu de luto e se recolheu, mas toda a experiência vivida não mais lhe permitiu se isolar na tristeza.
Escolheu viver o que lhe restava reservada, mas não mergulhada na dor.
Vendeu todas as padarias e a casa também. Morava num apartamento simples no mesmo bairro que fora feliz com Manuel e Pedro. Mantinha contato constante com margarida, sua amiga fiel. Estudava a Doutrina dos espíritos com afinco e cada vez mais se habilitava para o bem ao próximo.
Fazia parte de um grupo que colaborava num orfanato no mesmo bairro. Todo o seu dinheiro era dedicado à ajuda aquelas crianças. Era feliz.
Assim dez anos se passaram desde a morte de seu amado Manuel.
Um dia Margarida a convidou para conhecer um centro espírita que abrira no bairro da Tijuca. Os estudos eram muito bons e agradáveis e o dirigente era um senhor simpático e bondoso, tinham lhe dito e Margarida queria conhecer. Como o centro era perto dali, resolveu ir.
Margarida passou em sua casa à noite para pegá-la. Chegaram ao centro às dezoito horas e os estudos começariam às dezoito e trinta. Queriam conhecer melhor o centro antes dos estudos.
Era um lugar agradável, simples e simpático. No fundo da sala ficava uma pequena mesa e havia várias cadeiras, como num teatro. Sentado nesta mesa, de costas, estava o dirigente.
Uma senhora delicada as recebeu e conduziu Rosa e Margarida até ele.
Quando o dirigente se voltou para as duas, quase perdeu os sentidos.
Diante dele estava Rosa linda em seu vestido preto.
Rosa e Margarida se assustaram quando viram à frente delas aquele homem que conheciam muito bem. Era Toninho. Agora chamado por todos como irmão Antônio. Rosa ficou surpresa com o que via, mas nada disse.
Irmão Antônio se calou sobre qualquer assunto que não fosse a rotina da casa ou a doutrina. Margarida também se manteve discreta.
Tudo correu na maior paz e o grupo se apresentou sintonizado e somente preocupado com os estudos, o conhecimento, a evolução espiritual, os trabalhos de caridade e o bem. Rosa e Margarida souberam separar o passado do presente que se apresentava diante delas e ficaram totalmente encantadas com o que viram, ouviram e perceberam. E daquele dia em diante passaram a participar e contribuir com aquela casa de amor e paz.
Rosa não deixou mais de frequentar o centro, gostava do ambiente e, como há muito perdoara Toninho, sua companhia a fazia bem e ao olhar para ele lembrava-se de Pedro. Havia decidido que no momento certo contaria aquele segredo guardado em seu peito para ele que, tinha o direito de saber.
Dois anos se passaram nesta agradável rotina.
Rosa não dormira bem aquela noite, teve sono agitado e acordou com dor de cabeça. Não sabia por que se sentia assim.
Passou o dia com o coração angustiado, resolveu ir visitar Margarida naquela tarde e quando retornou percebeu, embaixo da porta, um envelope. Seu coração pulava sem ela saber por quê. Abriu o envelope e começou a ler aquelas linhas que se estendiam em três páginas de um papel fino e perfumado.

“Prezada Rosa, se está lendo estas mal traçadas linhas é porque já não me encontro entre vocês em vida. Estarei morta e enterrada.
Sei que estranhará esta carta, pois bem sei que nem sabe quem sou. Mas a conheço muito bem e sempre viveu compartilhando comigo minha vida, mesmo sem saber. Conheci seu marido Manuel antes mesmo que você pensasse em conhecê-lo. Nós nos amávamos. Confesso que não vivia uma vida íntegra, pois minha história na infância e juventude não me permitiu ser normal e inocente. Fui pobre, explorada e sofrida e no começo não tive opção.
Conheci Manuel quando fazia do amor só razão para o sexo e ser explorada e explorar era a minha rotina. Manuel me mostrou outra perspectiva, me deu esperanças e todo ódio que sentia pelos homens se transformou em paixão e amor por ele.
A esperança de ser “normal” me fez depositar nele toda a vontade de mudar. Mas você apareceu e me tirou essa esperança. Odiei você por isso. Fui para longe, me casei, mas nunca esqueci meu amor. Fiquei viúva e voltei.
Vocês já estavam casados. Mas como não tinham filhos, não foi difícil resgatar os braços de Manuel, mas queria mais. Mas Manuel te amava e quando o filho de vocês nasceu perdi seus braços. Tentei resgatá-lo, fiz de tudo, mas nada adiantou. Imaginei que sem o menino talvez ele voltasse para mim. Então decidi tirar a criança de vocês. Armei tudo. Hoje estou infeliz, pois mesmo sem o filho, Manuel nunca mais me quis.
Ele amava a família. Eu pensava que podia ser feliz também. Ter uma família só minha. Mas amor não se compra não se rouba não se impõe. Na verdade nunca tive o amor de Manuel.
Sua criança foi levada por um casal a meu pedido, mas há anos não tenho mais notícias deles. Quando vi que Manuel não voltou para mim, deixei de pagar ao casal e soube que eles abandonaram a criança, mas não sei dizer onde.
Quando soube da morte de Manuel, percebi que a minha vida tinha acabado.
Peço que me perdoe, pois minha alma precisará desse perdão no inferno que neste momento estarei.
Sara .”
Rosa quase desmaiou. Ficou horas sentada naquele sofá lendo e relendo aquela carta. Por quê? Perguntava a si mesma. Quando deu por si batiam na porta. Era Margarida que veio buscá-la para os estudos.
Quando Rosa abriu a porta Margarida se assustou com o que viu. Rosa estava com o rosto inchado de tanto chorar, com a mesma roupa que saíra de sua casa horas antes e com aquela carta na mão.
- O que houve Rosa? Perguntou Margarida assustada.
- Veja você mesma. Rosa entregou a carta a Margarida e voltou a sentar-se no sofá. Mal aguentava ficar em pé.
Margarida leu aquela carta de boca aberta, de espanto. Não acreditava no que lia. Quando acabou, abraçou a amiga e sugeriu que fosse se ajeitar para irem ao centro. Precisavam conversar com o irmão Antônio sobre aquilo. Com certeza ele saberia dar alguma explicação. 
O envelope não tinha remetente, nem endereço algum. Dificilmente conseguiriam saber ou achar quem enviou e, principalmente, quem escreveu, já que era claro que a tal mulher já tinha morrido. Só restava a esperança de Toninho saber alguma coisa. Não esse agora, o irmão Antônio, mas a memória do Toninho e resgatá-la era o que elas pretendiam. Com certeza ele conheceu essa mulher, já que Manuel e ele eram amigos, vieram juntos de Portugal, moravam juntos no cortiço e andavam juntos. Era certo que tomaram rumos diferentes, mas com certeza essa mulher era dos tempos de farra da Lapa.
Quando chegaram ao centro e pediram para conversar com o irmão Antonio, foram imediatamente recebidas por ele que, percebendo a gravidade da conversa, as levou para uma sala reservada.
Rosa entregou a carta a Toninho e aguardou que lesse.
O rosto de Toninho se transfigurou e, tremendo, leu a carta até o fim.
- O que querem de mim? Perguntou com a certeza que esperavam uma explicação não do Antônio, mas do Toninho.
- Queremos a verdade! Disse Margarida se precipitando à resposta de Rosa.
- Precisamos saber de tudo, sabemos que você sabe a verdade, que conheceu essa mulher. Disse Rosa.
- É verdade, não vou mentir para vocês. Vou lhes contar tudo que sei.
E, pausadamente, Toninho contou toda a história, desde que conheceram Sara, até a sua volta, o casarão, o seu envolvimento com ela, o de Manuel, a morte de Ferreira, os planos para separarem Manuel e Rosa. Tudo. Não omitiu nada. E ao final calou-se. Deixando as duas conscientes de que não participou do plano de Sara, de sua decisão de mudar de vida e sua angústia quando soube do desaparecimento de Pedro, da falta de certeza da participação de Sara e da falta de provas.
Falou daquela noite em que esteve na casa de Rosa, de seu arrependimento, de seu amor. Pediu perdão a Rosa e chorou como uma criança, diante daquela mulher que ele nunca mereceu.
Rosa então, com lágrimas nos olhos, levantou o rosto de Toninho que abaixara de vergonha e contou-lhe a verdade sobre Pedro.
Margarida não acreditava no que ouvia, nunca pensou que Rosa dissesse isso um dia para ele. E os dois se abraçaram e choraram juntos e Margarida mais uma vez presenciou o milagre do amor, do perdão e da caridade. Deixou a sala sem que percebessem para chorar silenciosamente em outro lugar.
Eram as arestas sendo aparadas.
Eram as sublimes almas que se davam ao direito de esclarecerem, suavizarem e resolverem ainda nesta vida dívidas guardadas no inconsciente espiritual. Rosa e Toninho não se amariam como homem e mulher, mas como irmãos em criação, em busca da redenção e da evolução.
Lutariam juntos para resgatar aquele ser prejudicado pelos vícios inconsequentes. Achariam Pedro. E assim os anos foram se passando.


Capítulo XII

Marta amava aquele menino e deu-lhe tanto amor que logo ele começou a falar. Ficou forte e adorava o circo.
Quando fez quinze anos, quis trabalhar junto com os palhaços. Era divertido e logo conquistou a plateia com suas palhaçadas originais e criativas. Construiu até uma réplica de um carro, onde dentro dele corria conduzindo com os pés atropelando os outros palhaços fazendo com que caíssem. Todos riam muito e aplaudiam. Era um sucesso. Aos poucos foi se tornando o líder até chegar a ser o principal.
O circo crescia e fazia sucesso. Já conseguiam apresentar-se nas cidades maiores, pois já tinham estrutura.
Marta era descendente de ciganos, seus pais eram donos do circo, que era pequeno e só tinha três atrações. O pai que fazia mágicas, a mãe que fazia adivinhações, ela que dançava e se vestia de palhaço. Mas ela amava tudo aquilo.
O pai morreu numa briga em uma das apresentações do circo. Tiveram que ficar algum tempo sem se apresentarem. Depois, a mãe se casou com outro cigano que conheceu numa cidade. Marta não gostava dele, mas ele fez o circo crescer. Marta nunca se interessou por ninguém e quando encontrou Pêpe, se dedicou integralmente a ele.
Os anos se passaram e hoje, dezembro de 1980, o grande circo apresentará uma grande atração.
Marta está muito feliz. Após a morte de seu padrasto e de sua mãe, Marta assumiu a direção do circo e deixou que Pêpe tomasse conta de tudo.
Como Pêpe era muito esperto e tinha ótimas ideias, o circo cresceu bastante e hoje empregava mais de oitenta pessoas entre malabaristas, equilibristas, mágicos, palhaços, anões além de vários animais.
Estavam todos muito felizes e realizados.
O circo cada vez mais lotava e tinham que ficar vários meses em cada cidade que iam.
Conseguiram comprar treilers novos e modernos, as roupas eram novas e luxuosas e os equipamentos de primeira. Mas Marta sempre notou os olhos tristes de Pêpe.
Nunca o enganara sobre sua origem desconhecida e como o encontrou pequeno e doente. Mas o amava muito e com certeza ali era o seu lugar, pois Deus o enviou para ela.
Pêpe a olhava com carinho, mas não esquecia aquele sorriso que estava em sua mente, aquele perfume de rosa e nunca esquecera o barulhinho que soava como o tintilhar de vidrinhos se tocando. Sua saudade era profunda, mas ele não sabia de quê.
Seria uma apresentação muito especial, pois era a primeira vez que se apresentavam no Rio de Janeiro, bem no centro da cidade.
Pêpe estava feliz, pois apresentariam uma atração diferente. O globo da morte. Treinavam muito, pois era perigoso.
Seus amigos tinham vindo do estrangeiro e montados em motos girariam naquele globo de ferro.
E a sua atração também seria especial. Juntamente com mais três palhaços fariam a plateia delirar de alegria. Marta era toda orgulho. Amava aquele filho e se espantava ao perceber o quanto de talento ele tinha para a vida no circo.
Só quem era especial, com sangue de liberdade e alegria, aguentava a vida circense e desde pequeno Pêpe demonstrou que amava aquilo tudo. Era seu palhaço preferido.
E a estreia foi um sucesso. Casa lotada. Bilheteria esgotada para as próximas três semanas de apresentações.
Todos estavam felizes. Mas o coração de Pêpe não estava tranquilo, se mantinha arredio, isolado e só se transformava nas apresentações.
Algo em seu peito o angustiava. Marta tudo fazia para animá-lo, mas ele preferia o isolamento de seu treiler.
Esperava a temporada acabar para descansar, antes da próxima parada.
Era um domingo e há muitos anos que irmão Antônio almoça na casa de Rosa.
Os domingos ficaram reservados para o encontro entre Rosa, Toninho e Patricinho que, agora casado e pai de uma linda menininha almoçava junto numa confraternização feliz.
Muitas vezes, Margarida também ia com o marido, já que os filhos estavam grandes e preferiam outros passeios.
Patricinho transformou o patrimônio que ganhara de Toninho num negócio honesto, deixou completamente as negociações ilícitas de lado e era dono de uma rede de lojas de materiais de construção. Conheceu sua esposa numa das lojas, onde a empregou.
Patricinho tomou um rumo certo na vida orientado pelo seu protetor.
Rosa era feliz com o destino do irmão e agradecia Toninho por isso. Neste dia, Patricinho chegou para o encontro com as entradas compradas, sua filha queria ver o circo e ele resolveu convidar Rosa e Toninho.  Rosa resistiu, mas aceitou e após o almoço todos se encaminharam para a apresentação das três horas no centro da cidade.
O circo era maravilhoso, colorido, alegre. Tudo que Fátima, filha de Patricinho queria ver. Algodão doce, pipoca, balões. Estavam todos felizes.
E o show começou. Risos, sustos, admirações.
Após a apresentação do globo da morte, entrou um palhaço correndo em volta do picadeiro, era alto, sua roupa colorida, as calças largas que se mexiam. Baldes d’água, escorregões. Risos, gargalhadas.
Por um momento, o palhaço chegou perto da plateia e foi mexer com Fátima que, maravilhada, gargalhava de satisfação. Seus olhos cruzaram os olhos de Rosa que estremeceu. Seu coração começou a bater descompassadamente, se acelerando cada vez mais. Rosa desmaiou.
O palhaço era Pêpe que não sabendo por que seu corpo se tornara gelado num crescente frio que subia dos pés ao crânio, numa carreira se deslocou para o fundo do picadeiro e os outros palhaços continuaram a apresentação para entreterem o público.
Toninho e Patricinho acudiram Rosa tirando-a da arquibancada e levando-a para fora, na esperança de que o ar fresco e água a animariam.
Rosa abre os olhos e cai em prantos. Conhecia aqueles olhos, conhecia aquele palhaço. Desesperou-se querendo voltar para dentro do circo, mas Toninho, a acalmando, pede que espere o espetáculo terminar que logo após iriam procurar pelo palhaço.
Rosa repetia, numa sequência de frases e nomes.
- É ele, é meu filho, é Pedro. Balbuciava.
- Pedro....Pedro....Pedro. repetia.
Toninho ficou atordoado. Será? Pensava.
Mas depois de tantos anos?  Como ela podia saber?
- Tem certeza Rosa?  Perguntou Patricinho.
- Tenho absoluta certeza, nunca esqueceria aqueles olhos. Balbuciou Rosa.
- Mas ele estava todo pintado, com aquela roupa. Retrucou Patricinho.
Toninho nada falava, seu coração saltava pela boca. Queria que fosse verdade. Coração de mãe não se engana. Pensava esperançoso.
E após uma hora a mais de apresentações e a saída do público, Patricinho resolveu ir sozinho falar com o responsável pelo circo. Preferiu que Rosa e Toninho ficassem esperando junto com sua esposa e filha. Primeiro ia verificar algumas coisas.
E entrou à procura do responsável pelo circo. Surpreende-se ao ver Marta uma senhora simpática. Pede para conversar e ela gentilmente o encaminha para o seu treiler.
- Do que se trata senhor...? Pergunta Marta.
- Patrício. Muito prazer.
- Prazer senhor Patrício, mas o que precisa?
- Gostaria de saber a respeito de um palhaço que se apresentou. Alto, magro, com uma roupa larga enfeitada de bolinhas coloridas. O primeiro que entrou. Disse Patricinho.
- Você provavelmente está falando de Pêpe, o palhaço principal. Meu filho. O que deseja saber?
- Pêpe é o seu nome?
- É como é conhecido por todos nós, mas foi batizado com o nome de Henrique Gonzáles. Nome de meu pai. Respondeu Marta orgulhosa.
Patricinho então começou a contar o acontecido no momento em que Pêpe se aproximou de sua irmã, a crise que lhe provocou e que ela estava lá fora aguardando o retorno dele.
Marta ficou transtornada diante do que ouvia e quis conhecer Rosa. Pediu que a levasse até ela.
Patricinho retornou e conduziu Rosa até o treiler de Marta. Ficaram aguardando do lado de fora. Toninho quis entrar, mas Rosa pediu que ele aguardasse também.
Após duas horas de conversa, choro e abraço, Marta sai para falar com Pêpe. Toninho vai ao encontro de Rosa que o abraça e os dois choram juntos a certeza que finalmente encontraram seu menino.
Marta entra no treiler de Pêpe, seus olhos ainda escorriam lágrimas. Seu coração estava triste, mas ao mesmo tempo feliz. Sabia da angústia de seu filho querido, suas dúvidas que ela nunca pôde tirar e sua tristeza. As lembranças que ele falava sem saber o que eram. Amava Pêpe com todas as suas forças, mas não queria vê-lo infeliz. Queria o que fosse melhor para ele e encontrar a família com certeza seria seu desejo.
Olhou para ele que a olhava espantado. Já tinha tirado parte da maquiagem e estava sem a roupa de palhaço.
Marta puxando-o pela mão pede que a acompanhe,             pois ele precisava conhecer alguém.
Rosa, com seus sessenta e sete anos, já não tinha a mesma firmeza, seu corpo magro e frágil e, emocionadamente abalado, se apoiou nos braços de Toninho que aos setenta e cinco anos também já não se sentia firme e viril. Abraçaram-se para não caírem. E assim ficaram até que Marta entra no treiler conduzindo Pêpe.
Patricinho a esposa e a filhinha observam Marta e aquele homem entrando. Será? Pensou ele emocionado. Se for verdade, minha irmã finalmente poderá sossegar seu coração.
Pêpe não consegue entender tudo aquilo, mas lembra daquela mulher sentada na arquibancada olhando fixo para ele. Esse olhar o abalou.
Rosa, ao olhar Pêpe entrar, não tem mais dúvidas, ele muito se assemelha a Toninho. Era como se o visse novamente como no passado.
Corre em sua direção e o abraça.
- Meu filho! Finalmente o encontrei. Rosa fala com a voz embargada.
Toninho fica estático de tanta emoção. Meu filho!
Pensa enquanto as lágrimas escorrem.
- Mas o que está acontecendo aqui mamãe? Pergunta Pêpe a Marta, que pede calma e solicita que todos se sentem para poderem conversar.
Marta começa a falar sobre como Pêpe foi encontrado por ela na porta do seu treiler.
Recorda a data, o lugar. Nada disso era novidade para Pêpe, já que Marta nunca lhe escondeu nada.
Rosa também conta de seu nascimento a festa de aniversário, o rapto.
Marta diz que Pêpe é conhecido por aquele apelido, pois era tudo que ele falava quando o encontrou.
Rosa fala das primeiras palavras de Pedro que eram Pepe Pepe e que um dia falou papa, deixando Manuel maravilhado.
Pêpe não contém as lágrimas, pois sem saber como, reconhece aquele sorriso.
Fala do barulho que ouve em sua mente o tintilhar de vidros.
Rosa então conta do móbili de cristal que ele tinha sobre o berço que balançava com o vento e fazia um barulhinho, quando os cristais se tocavam.
Pêpe ouvia tudo aquilo maravilhado. Então não estava louco, eram as suas lembranças. As lembranças felizes que guardara para que nos momentos tristes o consolassem. Mas elas o amarguravam, pois não as compreendia. Não eram ruins, mas o confundiam. Sabia, no fundo, que tinha a ver com algo do seu passado, mas era tão pequeno. Não se lembrava de mais nada. O tempo que antecedeu o seu abandono com a proteção de Marta, nada dessa época lhe vinha à cabeça. Não lembrava de nada, mas o barulhinho, o perfume e o sorriso de mulher estavam fixos em sua mente, eram claros feito o sol, só não os entendia.
Abraçou Rosa e desabou em prantos.
Finalmente saberia tudo sobre ele, sua origem, quem era, da onde veio. O que poderia ser se não estivesse ali. Mas, voltando-se para Marta, seu coração lhe mostrou o tanto que amava aquela mulher que lhe dera carinho, amor, proteção. Dera-lhe tudo que ele tinha e lhe ensinara tudo que ele sabia. Amava-a realmente como mãe.
Toninho se postou num canto, não queria quebrar aquele clima, nem interferir naquela felicidade. Não lhe pertencia, não era digno. Chorou baixinho, mas não de tristeza, de felicidade por Rosa, por Pedro e por ele também. Esperaria respeitoso o seu momento de compartilhar, isso se por um acaso merecesse tal presente.
Após tudo esclarecido e a falta de dúvidas de que Pêpe era realmente Pedro, Rosa convidou Marta e Pêpe para almoçarem em sua casa num encontro cordial.
Rosa sabia que os laços que ligavam Marta e Pêpe eram fortes e ela não pretendia interferir nessa ligação. Estava feliz por finalmente encontrar seu tão amado filho e isso lhe bastava. Era lindo, forte e saudável e isso era o mais importante. Queria-o livre e feliz. Não cobraria nada dele nem de Marta, pelo contrário era eternamente agradecida àquela mulher que criara seu menino com amor e carinho.
Marta percebeu desde o início, com quem estava lidando. Percebeu a pureza e a sinceridade de Rosa e admirava seu caráter.
Rosa pediu a Toninho que não revelasse a Pedro a sua paternidade, deviam isso a Manuel que amou com todas as forças aquele filho.
Toninho concordou, pois não era digno dele. O amaria, mas respeitaria a honra de Manuel.
Rosa beijou sua face em agradecimento e teve nesse momento certeza de que não se enganara com aquele homem que realmente mudara em nome do amor.
Rosa sabia do amor de Toninho por ela, mas também sabia que esse amor se tornou respeito e admiração de ambas as partes, então se sentia segura ao lado dele. Era um excelente amigo.
Naquele domingo, sua casa estaria cheia para o almoço. Pedro chegara após mais uma turnê com o circo. Passaram-se dois anos desde que eles se encontraram.
Rosa recebeu todos que amava para o almoço. Patricinho com a esposa e a filha, Toninho, Margarida, o marido e os filhos, Marta e Pêpe como gostava de ser chamado.
Foi o domingo mais feliz da vida de Rosa.
Num canto da sala estavam Maria das Dores e Manuel. Já tinha um tempo que ele havia despertado, estava esclarecido e feliz.
Estavam ali em uma missão e acompanharam toda aquela alegria, a união daqueles que viram passar por eles a vida cheia de percalços e superações. Percebiam os corações puros, redimidos.
E quando a noite chegou e cada um retornou aos seus lares, Rosa se recolheu em seu quarto. Seu pensamento trouxe a lembrança de Manuel. Seu amor, sua razão de viver.
Rosa estava serena e seu coração feliz por Pedro. Pensava que em algum lugar Manuel haveria de estar feliz pelo reencontro dela com o filho. Caiu uma lágrima de seus olhos.
Abriu o evangelho, leu e quando terminou, rogou uma prece agradecida a Jesus pelas graças recebidas.
Num lampejo, percebeu uma claridade suave e pensou ter visto Manuel. Sorriu e fechou os olhos, para abri-los logo depois nos braços daquele que a aguardava em grande júbilo e amparada por Manuel e por Maria das Dores, subiu ao alto em busca do lugar reservado a ela por entidades amigas e sublimes.                     


FIM
 Nota a esclarecer.

Quando nos encontramos no mundo espiritual, dependendo de nossa condição e ou evolução, somos capacitados a trabalhar nossas vidas encarnatórias na condição de movimentação de memória (regressão espontânea) a título de esclarecimento ou em trabalho de benefício ou de resgate de espíritos envolvidos e ainda cegos em suas condições e angustiados pela dúvida.
Talvez possa se estranhar uma história narrada por um espírito onde ele está inserido, como se as informações fossem dadas por outro espírito. Mas não somos unicamente Maria, João, Pedro e tantos outros nomes que enquadram esta ou aquela vida.
Progredimos no mundo espiritual, onde o nome não importa. Portanto ao me referir a mim mesma no livro, com o nome de Maria das Dores, apenas dou nome ao personagem, pois assim me foi mais fácil no desmembramento dos acontecimentos, sua posição cronológica e referência de personagem.
 
Saquarema, RJ 07 de Março de 2010.
Maria das Dores - Espírito.

OBS:. Esta nota foi me enviada após o término do romance por causa da minha imensa insegurança e inexperiência com relação ao trabalho. Assim a bondosa Maria das Dores me deu essa explicação, pois eu ficava incomodada por não entender o espírito contar a história se relacionando a ela mesma num sentido de personagem interagindo e sendo referido como "uma outra pessoa". Uma curiosidade é que a obra só foi assinada após ser concluída e penso eu que sabiamente Maria das Dores o fez para que as minhas dúvidas com relação a isso não interferissem no trabalho e mesmo assim, quando ela assinou, a insegurança se estabeleceu justificando a sua nota esclarecedora. 
Agradeço a todos que tiveram boa vontade e paciência para acompanhar a obra. Agradeço sinceramente a confiança depositada neste trabalho. Estamos em andamento com o segundo livro que dá destino aos personagens no plano espiritual. Ele ainda não está concluído. Assim que se finalizar estarei postando aqui para que todos possam acompanhar. Muito obrigada meus amigos. Fiquem com Deus.
10/05/2011.